29/03/2024

Um monólogo que finge polifonia: o banditismo é uma questão de classe?

Por

 
Paulo Henrique Vieira de Souza
ph.vieiras@gmail.com
 
Este trabalho busca analisa a primeira faixa do disco Da lama ao caos (1994), da banda Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), perceber possibilidades de que objetos artísticos provenientes da indústria cultural – neste caso, especialmente a canção comercial praticada no início da década de 1990 – constituam-se como reflexo humanizado do movimento vida. Propõe-se ainda a observar a nítida violência tematizada e formalizada na faixa, procurando compreender em que nível esta característica central é limite ou condição para o funcionamento estético do objeto em questão.
A escolha dessa faixa justifica-se principalmente por dois fatores: primeiro, por estar posicionada no início do disco, ganhando ares de manifesto e certa abrangência generalizadora reforçada pelo título, que expressa uma tese propagada por discursos à esquerda; e também por ser uma das músicas de CSNZ que conseguiu maior popularidade midiática, concretizando o intento de comunicação pressuposto por um disco pop.
a) Vinheta e canção
A faixa em questão é formada por dois núcleos que, de algum modo, mantém uma relação simultânea de independência e de correlação: neste trabalho, o primeiro, integrado por “Monólogo ao pé do ouvido”, será chamado núcleo da vinheta[1]; enquanto o segundo, integrado por “Banditismo por uma questão de classe”, se chamará núcleo da canção.
Devido a integrarem a mesma faixa, esses núcleos já teriam uma identificação sugerida, entretanto a permanência de um instrumento que marca a unidade de tempo de ambas e serve como ponte no trânsito de uma à outra, fazendo com que seu pulso seja o mesmo estabelece-as como unidades intimamente relacionadas. Esse caráter contínuo atua numa transferência de significados com mão dupla, obrigando uma reflexão que as considere partes de mesma importância na hierarquia da composição da faixa.
Iniciando a reflexão pela vinheta, segue-se a transcrição de sua letra.
Modernizar o passado
é uma evolução musical.
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas,
basta deixar tudo soando bem aos ouvidos.
O medo da origem ao mal.
O homem coletivo sente a necessidade de lutar.
O orgulho, a arrogância, a glória
enchem a imaginação de domínio.
São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade.
Viva Zapata! Viva Sandino!
Viva Zumbi! Antônio Conselheiro, todos os Panteras Negras,
Lampião, sua imagem e semelhança.
Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia.
Sua temática parece confusa, por não seguir um processo claro de coesão entre ideias. À estruturação linguística, soma-se um arranjo composto por apenas quatro instrumentos – duas alfaias[2], guitarra elétrica e voz – articulados de modo inusitado. A guitarra, em vez de desempenhar o papel melódico ou harmônico que geralmente lhe é atribuído, repete uma nota durante toda a canção, funcionando como instrumento percussivo a marcar a unidade de tempo e a dar à música um tom fastidioso contraposto pelas alfaias, que repetem sincronicamente células rítmicas semelhantes às de baques do maracatu martelo (cf. Vargas, 2007: 138), conferindo uma força tensiva agravada pela síncope e pela explosão grave do tambor.
Dentro dessa rede instrumental, surge uma voz cantante que não se organiza pelo padrão melódico, mas por variações de duração e acento. Seu ritmo, porém, não é padronizado, aproximando-se do que Mário de Andrade (apud Bastos, 2009: 42) chama de rítmica prosódica[3], com a diferença de que neste caso é construída pelo cantor de acordo com um esquema de improvisação permitido pela estrutura formal da música. Os acentos recaem sobre expressões que ganham ênfase, significando de modo diferente em seu contexto. Assim, a conformação musical torna-se um dos principais fios condutores da construção de sentido, favorecendo no receptor a relação entre palavras de um universo relacionado à força contestatória (como evolução; homem coletivo; lutar; poder bravio da humanidade; viva; Zapata; Sandino; Zumbi; Antônio Conselheiro; Panteras Negras; Lampião) e outras do campo musical (notas; soando bem; e cantaram), acrescentando-lhes significados em uma simbiose semântica que possibilita a edificação de símbolos fortes, dos quais o melhor exemplo é a ideia de canto-resistência realizada na palavra cantaram.
Seu modo incisivo e afirmativo, junto ao caráter enérgico que emana dos curtos 1 minuto e 8 segundos, faz de “Monólogo ao pé do ouvido” um trecho poético musical[4] de expressividade violenta assumidamente engajada. Mesmo assim, sua extensão exageradamente curta aponta a ideia de que seu sentido só se completa pela integração com a canção pela qual é seguida, estabelecendo com ela uma relação de influência mútua, de modo que a carga significativa construída nos segundos iniciais da faixa ainda está em funcionamento quando se inicia a canção. Mais ainda: é impossível divisar exatamente qual é o final de uma e o início da outra, de modo que “Banditismo por uma questão de classe” herda a aura criada pela vinheta, ao mesmo tempo que, na audição da faixa como um todo, completa-lhe os sentidos.
Diante dessas questões iniciais, segue-se a transcrição de sua letra.
Há um tempo atrás se falava em bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução
Há um tempo atrás se falava em progresso
Há um tempo atrás que eu via televisão
Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate
Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate
Ô, sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava, muitos hoje ainda falam:
“Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala”
Em cada morro uma história diferente
E a polícia mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido
Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate
Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate
Ô, sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava, muitos hoje ainda falam:
“Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala”
Em cada morro uma história diferente
E a polícia mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe
Banditismo por uma questão de classe
Banditismo por uma questão de classe
Banditismo por uma questão de classe
O tom de continuidade da vinheta não permanece até o fim, sendo uma característica inicial que não se repete no restante da canção. Da mesma maneira, apesar de ser baseada numa imensidade de repetições, a letra cantada no início também não é mais repetida até seu fim, aludindo a uma função introdutória deste trecho.
Nele, quatro sentenças são proferidas por um eu lírico que quase não se deixa notar. Elas se utilizam de um paralelismo sintático composto a partir do pleonasmo vicioso “Há um tempo atrás”; assim, as quatro sentenças relacionam-se primeiramente por sua sintaxe. Ao observar essa estrutura, torna-se possível superar parcialmente a impressão de aleatoriedade: as três primeiras sentenças apresentam verbo principal em terceira pessoa, indicando indeterminação do sujeito e uma aparente distância entre o eu lírico e o fato de se falar em bandidos, solução e progresso, como se fosse um receptor distante desse “ouvir falar”, o que fica claro pela quarta sentença, em que se indica uma mudança ocorrida pelo transcorrer do passado ao presente.
Nos três primeiros versos, observa-se uma gradação a respeito do que se ouvia falar: anteriormente, falava-se em bandidos, mas ainda cria-se na solução desse problema, que viria pelo progresso. Assim, a ruptura do terceiro para o quarto verso consiste na sugestão de uma nova percepção sobre os fatos que não é, entretanto, apresentada imediatamente, mas lançada a um futuro interno à própria canção, como expectativa. O sinal dessa mudança de percepção surge musicalmente ao fim do quarto verso, pela explosão da guitarra que marca a diferenciação da parte introdutória com relação ao restante da canção, inaugurando um novo momento, onde o instrumental se dispõe de maneira superficialmente diversa, mas a estrutura permanece a mesma.
Além da guitarra, também alfaias e caixa são integradas à música criando uma atmosfera diferenciada da anterior, sem perda completa de vínculo, garantido pela mesma métrica, mesmo pulso e pela continuação do instrumental que já estava presente anteriormente. Essa nova instrumentação cria uma tensão advinda do ruído em um groove prolongado que mantém em suspenso a esperança da concretização de sentido iniciado pelos quatro primeiros versos.
Apesar da expectativa, o que se encontra na continuidade é uma apresentação de casos reais de banditismo que, de tão conhecidos no Recife, se tornaram lendas[5]. Esses exemplos são repetidos exaustivamente, constituindo o centro da canção e, mesmo assim, tendo seus significados aparentemente ilhados, como se fossem fragmentos de discurso a se sustentarem independentemente das demais partes.
Um aspecto determinante de sua força está na remissão às lendas e no fortalecimento artístico do caráter lendário de cada um desses exemplos. Segundo o Dicionário Online Michaelis (2014):
lenda 
len.da 
sf (lat legenda1 Tradição popular. 2 Narrativa transmitida pela tradição, de eventos geralmente considerados históricos, mas cuja autenticidade não se pode provar. 3 História fantástica, imaginosa. 4 Mentira, patranha. 5 História fastidiosa.
Portanto, não há erro em considerar Galeguinho do Coque, Biu do Olho Verde, a Perna Cabeluda e Lampião como figuras lendárias, por serem todos considerados “históricos” no sentido factual do termo, mesmo que grande parte de seus feitos (no caso da Perna Cabeluda, todos os feitos) não sejam comprováveis, tendo se tornado conhecidos pela disseminação popular, ganhando, por isso, tom fantasioso. Esse aspecto lendário ganha ainda mais força pela aproximação da tipologia narrativa, construída pela utilização de uma terceira pessoa que parece querer esconder quem fala, confirmando o caráter indeterminado da autoria e permitindo a inferência de que tais sentenças poderiam ser proferidas por qualquer morador da cidade, como se isso garantisse sua veracidade. Aí, está demonstrado também algo da lógica que determina a vida social, o que a aproxima, para além da etimologia, do vocábulo legenda.
Em texto sobre “Morte do leiteiro”, de Drummond, Alexandre Pilati (2007) faz uma leitura crítica do termo, valiosa também para o caso aqui analisado: “‘legendas’ [...] São frases feitas de impessoalidade, mas que, por sua vez, marcam e determinam a vida organizada socialmente” (Pilati, 2007: 2). Assim, as lendas, rearranjadas no interior da canção, funcionam como legendas em desenvolvimento tão avançado que transformaram-se em narrativas coletivas, mantendo o caráter simultaneamente determinante e explanatório; seu lado de dever e de necessidade; e, até mesmo, a sua função exemplar (cf. Pilati, 2007). Desse modo, condensam-se como formas cifradas da ideologia: naturalizadas, despersonalizadas, reificadas.
Junto dessa verdade pretensamente polifônica e popular, outro fator a determinar sua força como bloco significativo independente do restante da canção está no modo como a voz cantante organiza a estrofe em um trabalho rítmico no qual versos que poderiam ser simplesmente Galeguinho do Coque não tinha medo da perna cabeluda e Biu do Olho Verde fazia sexo com seu alicate, com teor absurdo já flagrante, tomem potencialidade plurissignificativa pelo surgimento de pares como:

 

Galeguinho do Coque – medo
          Galeguinho do Coque – não tinha
       Galeguinho do Coque – perna cabeluda
Biu do Olho Verde – sexo
Biu do Olho Verde – fazia
Biu do Olho Verde – seu alicate

 

 
Esse jogo vai contra a conformação linear de sentidos, criando estrofes em que a substância realista presente no lendário é desrecalcada pelo aspecto grotesco das imagens criadas a partir de uma primitivização da língua, concedendo-lhes uma força nova que, de tão marcante, parece fechar-se em si mesma, como se fosse um breve vislumbre da potência desfetichizadora da fragmentariedade como aspecto da dialética ordem/desordem, encenada na relação música/discurso, formalizada na canção[vi].
Há então uma desestabilização do caráter usualmente superficial da lenda e a possibilidade de compreender a fragmentariedade de sentidos como integrante de um processo musical que, contraditoriamente, é capaz de indicar alguma coesão artística na canção: o ritmo do canto nessas estrofes em que os casos de banditismo são apresentados configura uma imitação de células rítmicas de baques do maracatu, que, por sua vez, baseiam o instrumental da canção.
Assim, mais do que uma coincidência ou um apenas recurso técnico criativo, essa relação demonstra a musicalidade como tênue condutora dos sentidos da canção e como princípio regente da maneira de organizar o discurso. Não se trata de, abstratamente, considerar os possíveis sentidos do som, mas de observar o dado sensível de que a lógica do maracatu determina pela forma um conteúdo, possibilitando uma aparência de fragmentação que permite considerar sua integração para além do fragmentário.
Considerando esse fio de ligação, que, apesar de material, é fluido, compreende-se a relação não contínua da primeira estrofe com aquelas que exemplificam os casos de banditismo como sugestão de que o problema deixou de ser mediado pela televisão, passando a ser experimentado diretamente a partir da realidade.
Para demonstrar tal mudança, o eu lírico procura diminuir gradualmente as marcas textuais da subjetividade na tentativa de reproduzir a realidade imediata com a qual ele teria se confrontado após deixar de “ver televisão”. É o que se observa na transição da organização lírica para algo mais próximo da narrativa: os versos “Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha/ Não tinha medo da perna cabeluda”, devido à presença de verbo de estado, ainda estão próximos de uma reflexão lírica; enquanto os versos seguintes, “Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia/ Fazia sexo com seu alicate”, já configuram apresentação de ação verbal, aproximando-se da narração, que é completamente realizada em “[...] sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela/ A polícia atrás deles e eles no rabo dela/ Acontece hoje e acontecia no sertão/ Quando um bando de macaco perseguia Lampião/ E o que ele falava, muitos hoje ainda falam:/ ‘Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala’”, onde acontece uma suspensão do lirismo com a intenção de, por via da narração, alcançar o presenciar do banditismo como situação social afastada da subjetiva avaliação.
Essa progressão de sentido em direção a despersonalização do eu lírico é acompanhada por um diálogo entre voz cantante e alfaias – principais responsáveis pela condução rítmica da música – que culmina num efeito de reforço do efeito ficcional da narrativa nas estrofes 4 e 7.
No momento em que a segunda estrofe é cantada, a alfaia ataca somente as notas essenciais para caracterizar síncopes simples, que acontecem do último para o primeiro tempo do compasso. Enquanto isso, a voz cantante insere-se nessa tessitura musical em uma linha melódica simples, mas de ritmo elaborado e bastante demarcado que, conforme dito, reproduz uma variação possível de taróis ou caixas de maracatu pela organização das palavras do verso, conforme demonstram os exemplos seguintes[vii]:
 
 
 
 
Mi
Ga-
Ré#
 
 
Dó#
 
 
Si
 
Lá#
 
        le-guinho do Co-que não ti-nha me-do não ti-nha/ Não ti-nha me-do da per-na ca-be
Sol#
 
Sol
 
Fá#
 
 
Mi
 
 
 
 
Mi
Biu
Ré#
 
 
Dó#
 
                                                                                       com seu a-li-ca-te
Si
 
Lá#
 
       do O-lho Ver-de fa-zia se-xo fa-zia/ Fa-zia se-xo
Sol#
 
Sol
 
Fá#
 
 
Mi
 
 
 
 
 
 
Na repetição da estrofe, a execução da voz cantante permanece a mesma, entretanto, o ritmo dos versos contamina o instrumental que se torna mais sincopado, mais tenso, conforme demonstra a transcrição:
 
 
 
 
Essa tensão toma toda a canção e aumenta durante a quarta estrofe, onde o cantar deixa, na maior parte dos casos, de ser sincopado, mas apresenta maior número de sílabas por versos, criando a sensação de velocidade devido ao aumento quantitativo de sons em um tempo constante (maior número de notas em um compasso de mesma métrica e andamento) que, aos poucos, se torna quase insuficiente para as palavras, sons e sentidos que contém.
 
 
 
 
Esse turbilhão simula um movimento, uma corrida aos tropeços causados pela síncope instrumental, que remete à fuga que sobe morro, ladeira; pula córrego e beco na favela. Essa tentativa de reprodução da fuga por soluções musicais é um recurso engenhoso partícipe da constituição de um pseudo-narrador que utiliza sua posição privilegiada frente à narrativa para manipular os sentidos a favor do seu interesse, diluindo-se nas marcas textuais, para não ser notado. Nesse caso, ele pretende que o receptor vivencie a experiência da fuga para aprender, com essa realidade supostamente imediata, a tese que está sendo urdida no discurso fragmentado e que ainda não foi textualmente expressa.
O clímax dessa curta narrativa encontra-se nos últimos quatro versos, em que são apresentadas duas situações das quais emergem figuras antagônicas, definidas com ar maniqueísta: primeiramente, a polícia, representante do estado e presença ostensiva da ordem que, por desconhecer a realidade dos morros, mata pessoas inocentes; e, após breve pausa para demarcar a relação causal, os bandidos – materialização da desordem –condicionados à violência como único meio de sobrevida ainda que indigna. Esses versos demarcam a tese em sua versão “aplicada”, divisando já a estrofe final, que funcionará como conclusão da canção.
No entanto, a estrutura fragmentada e a tendência repetitiva quebram novamente a expectativa de continuidade e, após solo instrumental, três estrofes de letra idêntica são cantadas, com a notável diferença de que a tonalidade vocal é elevada nos dois primeiros versos das estrofes 5 e 6, como se dando a entender uma raiva anteriormente contida que em função da repetição começa a ser parcialmente extravasada, contribuindo para a conformação de uma violência que perpassa a canção, ainda que escamoteada em um discurso que se quer impessoal.
Assim, após a construção de uma tessitura – permeada por violência – em que o eu lírico se esconde na simulação de objetividade, surge no fluxo do canto uma estrofe final, como espécie de conclusão que procura reafirmar toda a imparcialidade construída até então. Ela confirma a tendência coesiva na fragmentação, apresentando pela primeira vez a tese referida no título como desencadeamento dos versos anteriores: o banditismo é uma questão de necessidade ou de maldade?
A conclusão é categórica, apesar de elíptica, cumprindo a premissa tese + antítese = síntese, ao opor dois versos repetidos que afirmam ser o banditismo uma questão pessoal (banditismo por pura maldade), a outros dois que afirmam ser coletiva (banditismo por necessidade), formando um conjunto de quatro versos opostos, colocados de maneira alternada, a sugerir a encenação de duas vozes a discutir. A resposta surge de uma terceira voz, distanciada das limitações das outras, absortas em suas limitações; seu tom é diferente das demais e afirma, em um discurso assumidamente politizado, que o problema está para além da contenda encenada, sendo uma questão de classe (banditismo por uma questão de classe).
A afirmação atua junto à falsa isenção do eu lírico, sendo repetida quatro vezes, com vista em superar qualquer dúvida a respeito de sua certeza, soando como palavra final, síntese da discussão, verdade inabalável.
b) Eu lírico, narrador ou popstar?
Seguindo a sugestão de Luís Bueno (2008), observa-se que a questão central em jogo na canção tem base na permeabilidade social entre ordem e desordem mediada por uma violência de classe:
[...] a violência da ordem não tem legitimidade por princípio. Ela está ali para garantir o capital mesmo numa situação em que a sobrevivência de toda uma população está em franca oposição a esses interesses. Nesse caso pode ser legítima? [...] se trata de ação irracional, que a ordem em tese não comporta, ou se trata de repressão a uma desordem que deveria vigorar como ordem, porque mais justa do que a ordem que vigora. [...]
Os papeis, como se vê, estão embaralhados, mas não há qualquer possibilidade de congraçamento ou de humanização de relações [...]. A violência corroeu de vez essa possibilidade (Bueno, 2008: 3).
Portanto, no caso brasileiro, a violência não pode ser compreendida por si, seja em sentido positivo ou negativo, mas somente como repercussão processual da dialética ordem/desordem, identificada em sua dinâmica básica por Antonio Candido (1993), que estabelece conformações diferentes nos âmbitos da sociabilidade, da experiência criativa e da ordem simbólica. Assim, devido à centralidade desta dialética, a violência torna-se um dado incontornável e inconciliável na discussão das formas brasileiras.
Declaradamente engajada, “Banditismo por uma questão de classe” parte dessa consciência do caráter dialético e incontornável da violência para demonstrar que o banditismo é apenas mais uma de suas modalidades, funcionando como resposta à exploração de classe e à indiferença do estado frente às desigualdades que regem a vida no Brasil. Nesse sentido, a canção chega à beira da propaganda do banditismo, justificando-o como tentativa de superação das condições que originam a violência. Conforme se observa em Bueno (2008) e Pellegrini (2004, 2005) essa temática não é novidade na arte brasileira: pelo contrário, permeia-a (em diferentes intensidades) nas melhores de suas manifestações. Por isso, o que mais interessa é observar o modo como isto se dá no caso de CSNZ.
À primeira vista, a canção aparenta ser uma colagem de recortes sem relação entre si; com um pouco mais de atenção é possível notar uma série de imagens que giram em torno do banditismo, aludido em seu aspecto social; ao tomar a musicalidade como fio condutor, compreende-se que esses fragmentos compõem uma totalidade descontínua porém coesa, permitindo que a canção seja tomada como discurso, com possibilidade de deflagração de suas prováveis intenções.
De início, na primeira estrofe, é perceptível a ideia do eu lírico: o que impede que a violência seja vista como problema social é a alienação causada pela mediação no conhecimento dos fatos sociais, desempenhada neste caso pela televisão. Surge daí a intenção de dar a conhecer a realidade sem mediações, propósito contraditório desde o seu cerne, baseado no mais raso da ilusão positivista.
As estrofes seguintes apresentam a tentativa de cumprimento desse objetivo pelo autoapagamento gradual do eu lírico até à estrofe final, onde surge a proposição a ser comprovada. Apesar de bastante lógica e aparentemente simples, essa argumentação tem um complexificador: a musicalidade fragmenta o discurso e denuncia pela voz cantante a impossibilidade da transferência direta da realidade à arte sem mediações subjetivas.
Ao delegar à música um papel preponderante de coesão do texto, a estrutura argumentativa realiza simultaneamente dois movimentos: um designado pelo ímpeto organizativo do eu lírico; e outro de desordenação, advindo da regência sincopada da rítmica, que pela fragmentação aponta a possibilidade de integração significativa do todo. Assim, a estrutura da canção recria a dialética ordem/desordem, opondo-se à hiper-determinação que poderia estar sugerida na temática.
A relação entre eu lírico e voz cantante, indissociável na experiência auditiva, cria um curto-circuito onde a violência é refeita formalmente, perpassando a estrutura da canção, que confirma-a como fruto de uma atitude incerta vivenciada pelo eu lírico, dividido entre organizar e desorganizar. Este efeito tem como consequência a flexibilização da certeza do discurso e consequentemente de sua conclusão, de onde passam a surgir mais perguntas do que respostas, afinal, se o banditismo é uma repercussão da violência de classe disseminada na sociedade brasileira pela permeabilidade entre ordem e desordem, refeita na canção pela relação eu lírico/voz cantante/instrumental, há que se perguntar a que classe essa violência artística serve, considerando-se aí sua vinculação irremediavelmente interesseira com a indústria fonográfica.
A resposta passa novamente pela relação entre as formas sincopadas do arranjo e a organização da voz cantante (e, por conseguinte, do eu lírico), que se apontam mutuamente na configuração de um autoquestionamento (cf. Bastos, 2007) em que a forma torna-se conteúdo latente, chamando atenção à canção como produto do labor humano, neste caso, direcionado para composição de um objeto que visa lucro. Essa desnaturalização da canção pop coloca em evidência o artista transformado em popstar (do qual Chico Science era uma das melhores concretizações): o homem transformado em espetáculo e inserido forçadamente na classe detentora do capital como condição para repercussão social da representação artística.
Apresenta-se aí uma lógica perversa: no capitalismo avançado, a violência reificadora da arte também é uma questão de classe; a representação é um modo de banditismo ao qual resta expor as marcas do trabalho que a constituiu, a fim de exibir-se como mercadoria, o que já é um mérito em meio ao contexto da década de 1990.
Assumir-se como produto capitalista é, portanto, essencial para considerar as possibilidades críticas da encenação da violência, que deixa de ser somente dado espetacular com fim em satisfazer o deleite baseado no terror e na piedade, na atração e na repulsa, na aceitação e na recusa (cf. Pellegrini, 2004), tornando-se também “abertura para um discurso que comporta um viés político [progressista] necessário” (Pellegrini, 2004: 32).
c) Canção e vinheta
Após iniciar a interpretação de “Banditismo por uma questão de classe” a partir da vinheta “Monólogo ao pé do ouvido”, chamando atenção para sua contribuição nos sentidos da canção, vale a pena fazer o percurso contrário, com finalidade de interpretar a faixa como um todo.
A canção veicula superficialmente um discurso fragmentário favorável a compreensão do banditismo como problema de classe. Em seu nível mais profundo, no entanto, problematiza essa afirmação pela constituição de um processo de autoquestionamento que exibe as marcas do trabalho que a constituiu, chamando atenção para o seu caráter de mercadoria e para uma voz cancional que organiza pela desorganização, reproduzindo musicalmente a violência que tematiza. Enfim, constitui-se como espaço do incômodo e de auto problematização.
A vinheta que a antecede, por sua vez, tem tom afirmativo e sugere um ativismo militante. Nesse sentido, a faixa como integração dessas duas tendências configura uma contradição entre o desejo engajado de atuar socialmente e a impossibilidade inerente à canção devido aos limites impostos pelas mesmas determinações que condicionaram a sua existência.
Ao juntarem-se, o ativismo da vinheta parece ser contido pelo desencanto surgido da canção que reafirma o pessimismo contido na ideia de monólogo, palavra que pode significar tanto texto feito para ser dito por um ator, assim como conversa consigo mesmo ou, ainda, discurso que não atinge o interlocutor. Nesse sentido, há aqui a consciência de um eu/eu, apesar do instinto engajado depreendido da faixa. Há inerência da negatividade desiludida do alcance do discurso: a quem chegará a certeza de que Zumbi, Lampeão e os Panteras Negras cantaram? Quem será convencido de que o banditismo é uma questão de classe?
As perguntas estão armadas e as respostas flutuam pelos índices imprecisos da musicalidade das canções, em seus versos, nos recursos gráficos do disco, nas apresentações da banda ao vivo, com seu performático frontman; nas entrevistas televisivas, em fotografias de revistas, nos clipes produzidos pelos cineastas do Manguebeat etc. Estão espalhadas no falatório midiático-espetacular que deixa a voz da canção em um solilóquio vazio e infindável.
Referências Bibliográficas
Bastos, Hermenegildo, “O que vem a ser representação literária em situação colonial”. En: Revista Intercambio dos Congressos Internacionais de Humanidades (UnB) 2, 2007, pág. 1-14.
Bastos, Manoel, Notas de testemunho e recalque – Uma experiência musical dos traumas sociais brasileiros em Chico Buarque e Paulinho da Viola (de meados da década de 1960 a meados da década de 1970). Tese (doutorado). Assis: UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2009.
Benjamin, Roberto, A media e os mitos. En: V Congreso Latinoamericano de Ciencias de la Comunicación, 2000, Santiago. Anais do V Congreso Latinoamericano de Ciencias de la Comunicación. Santiago: ALAIC, 2000.
Bueno, Luís, Banditismo por uma questão de classe. En: XI Congresso Internacional da Abralic, 2008, São Paulo. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo: ABRALIC, 2008.
Candido, Antonio, “Dialética da Malandragem”. En: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
Dicionário Online Michaelis, Dicionário Online Michaelis, 2014. En: < http://michaelis. uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra =lenda> 23/05/2014.
Freitas, Leonardo, A vinheta e sua evolução através da história: da origem do termo até a adaptação para os meios de comunicação. Dissertação (mestrado). Porto Alegre: PUCRS, Faculdade dos Meios de Comunicação Social, 2007.
Pellegrini, Tânia, “No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje”. En: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea 24, 2004, p. 15-34.
–, “As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea”. En: Crítica Marxista 21, 2005, p. 132-153.
Pilati, Alexandre, A lógica da reificação na “Morte do leiteiro” de Drummond. En: V Colóquio Marx e Engels, 2007, Campinas. Anais do V Congresso Marx e Engels. Campinas: CEMARX, 2007.
Tatit, Luís, O Cancionista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
Vargas, Herom, Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
Referências Discográficas
Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music (Chaos), 1994.
–, Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music (Chaos), 1996.


[1] O termo vinheta é jargão da área da comunicação. De maneira genérica, pode-se dizer que consiste em um elemento que funciona como adereço a outro objeto (cf. Freitas, 2007). O estudo de suas funções em discos de música pop ainda não está aprofundado, mas parece constituir um caso de neologismo, designando uma música (com ou sem canto) de curta extensão, que aparenta casualidade e pequena importância no conjunto do disco. Mesmo assim, em discos pops, a vinheta costuma anteceder canções com as quais se relaciona por fios tênues de significação, que muitas vezes não chegam nem a ser observáveis pelo receptor. Também é chamada comumente de música incidental.
[2] Alfaias são tambores utilizados tradicionalmente em festejos do Nordeste brasileiro como o Côco, a Ciranda e especialmente o Maracatu.
[3] Conforme demonstra Bastos (2009), Mário de Andrade refere-se à rítmica africana, que desconhecia a padronização utilizada na música ocidental, por isso o termo só se adequa ao modo como a voz “canta” no exemplo analisado sob uma perspectiva limitada, afinal, a própria análise aponta que a prosódia é regida pela métrica designada pela alfaia em acordo com a rítmica brasileira.
[4] Neste caso, considera-se o fragmento como poético musical devido ao distanciamento da forma canção, onde a entoação melódica é essencial (cf. Tatit, 2002: 9).
[5] Galeguinho do Coque e Biu do Olho Verde viveram no Recife durante a década de 1980 e ganharam tamanha notoriedade que se tornaram personagens populares da cidade. O primeiro ficou conhecido por cometer crimes e esconder-se no bairro do Coque, subúrbio da cidade, impossibilitando sua captura pela polícia; o segundo tornou-se símbolo de brutalidade devido a relatos de assaltos seguidos por estupro e torturas com utilização de alicate.
A perna cabeluda é referência a uma lenda pernambucana a respeito de uma perna humana, destacada do corpo, que chutava pessoas nas noites escuras. Segundo Roberto Emerson Câmara Benjamin (2000), os jornais e as emissoras de rádio do Recife divulgaram em várias matérias a aparição deste ser, fazendo a história se espalhar pela região metropolitana da cidade.
[vi] Por outro lado, essa primitivização se aproxima também da criação espetacular de imagens grotescas facilmente assimiláveis como mercadoria a satisfazer comercialmente o gosto pelo exótico.
[vii] O fim do verso (duas últimas sílabas) não está representado no gráfico porque não tem altura definida, aproximando-se da fala.

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