01/06/2025

O Estado Beligerante e a tecnologia digital

Por

 
Débora C. Carvalho*
 
Introdução
Em Ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional Herbert Marcuse afirma ser a sociedade unidimensional “uma combinação produtiva entre o Estado de Bem Estar Social e o Estado Beligerante” (1973, pag.38). Sua análise enquadra criticamente a sociedade estadunidense, embora também se refira às sociedades dos países capitalistas (então) mais desenvolvidos, revelando as tendências sociais nelas contidas. Porém, não desenvolve explicitamente nessa obra uma análise ou uma concepção acerca do Estado Beligerante ou de Guerra (Warfare State), embora caracterize o de Bem Estar Social, entendido por ele em sentido amplo. Essa lacuna, além de causar certo desequilíbrio na análise, torna o conceito de “sociedade unidimensional” quase opaco. Por essa razão, procuro nesse trabalho caracterizar o significado do conceito de Estado beligerante a fim de atualizar o próprio conceito de Sociedade Unidimensional, visto que neste aquele parece ter adquirido grande preponderância.
Marcuse parece ter se apropriado, para seus próprios fins, do conceito de Warfare State – que literalmente poderia ser traduzido como “Estado de Guerra” – elaborado por Fred J. Cook em O Estado Militarista, obra explicitamente nomeada por ele (1973, p.20), cuja tradução brasileira opta pela expressão “Estado Beligerante”, que julgamos mais apropriada do que “Estado de Guerra” ou “Estado Militarista”, por evitar a identificação com outros Estados militaristas, como o germânico da década de 1930. Nessa obra, Cook pretende analisar como tal tipo de Estado foi implantado nos Estados Unidos da América a partir do final da década de 1930, às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
 
I
A investigação levada a cabo por Cook em O Estado militarista comporta quatro níveis: no primeiro deles, verifica como o complexo industrial-militar soube tirar o máximo proveito da nova atmosfera do pós- guerra, especialmente para conquistar mais verbas e alavancar ainda mais sua expansão; no segundo, o foco incidirá na identificação do grau de dependência da economia estadunidense em relação à indústria bélica do país, vista como “motor” de seu dinamismo. No terceiro, a análise privilegiará a alteração no equilíbrio de poder decorrente de uma mudança de comportamento dos militares, que mina ou enfraquece o poder civil e suas instituições, tradicionalmente preponderantes na democracia norte-americana. Finalmente, o autor procurará efetuar um balanço da extensão e do alcance do poder efetivo do Estado Beligerante, configurado no bojo desse processo.
Na primeira parte, o autor procura mostrar como há uma continuidade na ação dos promotores do complexo industrial-militar: se, durante o período de guerra, eles recorreram metodicamente à propaganda alarmista, que visava disseminar o pânico entre a população da nação já que alardeava serem insuficientes as verbas destinadas pelo governo à defesa ou, na ânsia de conquistá-las, estar o país correndo grave perigo, no período da Guerra Fria esse procedimento foi enormemente intensificado – a tal ponto que, segundo o autor, o clima de pânico chegou a obstaculizar até mesmo qualquer tentativa de negociação diplomática com a URSS, o que teria levado o primeiro ministro soviético, N.Krutschev, a afirmar que “os Estados Unidos eram dominados por uma psicose de guerra”. Nesse aspecto, o fato novo decorrente da constante repetição desse procedimento, com a consequente produção do pânico, foi a geração de forte sentimento patriótico, por um lado, e a construção de um modo específico de representação histórica do país, por outro.
Segundo esse tipo de visão, passou a ser bastante frequente representar a história dos Estados Unidos, mesmo nos períodos em que a postura isolacionista foi amplamente predominante, como se ele estivesse sendo permanentemente perseguido ou acossado por cruéis inimigos. A ampla disseminação deste tipo de representação não deixou de provocar efeitos profundos no comportamento político do cidadão, que se viu mais motivado para cultivar intensamente o sentimento patriótico, ao mesmo tempo em que, na mesma proporção, passou a nutrir grande desconfiança ou mesmo aversão por outros povos e países, especialmente em relação aos poucos conhecidos ou os que não se alinhavam politicamente com os Estados Unidos. Esse comportamento, sobretudo, reforçou sua adesão e apoio à expansão das atividades militares ou bélicas adotadas pelo país. Em tal cenário, tornou-se muito difícil o desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de questionar a escalada militar e a configuração do Estado Beligerante, que então adquiria contornos mais precisos. Por esse motivo, não é descabida a tese, ou antes, a observação efetuada por H Marcuse acerca do fim da oposição e da crítica no país e nas sociedades que ele denominou de “unidimensionais”, embora se referisse mais à neutralização conjuntural do potencial revolucionário da classe operária nesse tipo de sociedade.
De qualquer modo, o fato a ser destacado é que a repetição constante desse tipo de representação histórica gerou intenso sentimento de pânico entre a população, que poderia até ser caracterizado como quase intolerável: isso estimula alguns observadores a afirmarem que tal aspecto acabou por redundar na formação de um tipo de paranoia nacional. De fato, em uma atmosfera como essa qualquer ato trivial pode redundar em reações desproporcionais, além de permitir a germinação de atitudes semelhantes às verificadas após o atentado de 11 de setembro de 2001: nessa ocasião, o país se viu ameaçado por objetos corriqueiros, que adquiriram ares insólitos e ameaçadores repentinamente: canetas continham veneno e não tinta, as cartas entregues pelo correio não eram simples correspondência cotidiana, a tecer os laços sociais da população, mas seriam enviadas por inimigos indefinidos e violentamente cruéis, que conteriam bombas ou venenos. Como o pânico paralisa, serviu muito adequadamente aos propósitos dos interessados em intensificar a atitude beligerante do país e, principalmente, expandir ainda mais a produção e disseminação de armas.
Essa representação adquiriu contornos mais dramáticos e sombrios na época da Guerra Fria: qualquer notícia acerca da produção militar soviética ou sobre suas forças armadas desencadeava ondas de terror e insegurança entre a população estadunidense. Obviamente, essas ondas, que não costumam ser espontâneas, favoreceram espetacularmente a ação e o desenvolvimento do referido complexo. Bastava um anúncio ameaçador para este lograr mais e mais verbas. Nesse processo, em que o medo toldava a atmosfera da nação, o Departamento de Defesa pode crescer em ritmo verdadeiramente acelerado: ao mesmo tempo, sua expansão parecia inibir poderosamente o desenvolvimento de outros departamentos afeitos a outras áreas de atividades, como o consagrado á saúde ou o voltado á educação. Nessa direção, não é impensável supor, como o autor parece estimular ou sugerir, que os militares incentivaram decididamente a eclosão da Guerra Fria, assim como manipularam ou administraram as vicissitudes dela decorrentes em benefício do complexo industrial-militar.
Cook procura demonstrar como isso ocorreu. Utilizando diversas fontes, identifica um padrão dominante no comportamento da economia estadunidense no período mencionado. Segundo esse padrão, toda vez que o clima de tensão com a URSS sofria um abrandamento ou uma distensão, a bolsa de valores, em particular, e a economia do país, no geral, pareciam registrar o temor de uma súbita desaceleração na produção e nos negócios diretamente relacionados com a atividade militar: ou, em outras palavras, sempre que a possibilidade concreta da paz era vislumbrada, ainda que tenuamente, o mundo das finanças e dos negócios alardeava em bom som como tal fato poderia ser desastroso para o país. Como a imagem dolorida e perversa dos efeitos negativos da recessão da década de 1930 ainda estava presente na vida de muitos, o anúncio de possíveis dificuldades no futuro próximo ou imediato desestimulava qualquer apoio civil decidido aos eventuais esforços políticos dedicados à conquista da paz. Em contrapartida, qualquer fato que redundasse em agravamento das tensões ou em um fortalecimento do conflito entre os dois países provocava grande euforia no mundo dos negócios e das finanças. Nesse sentido, a economia passou objetivamente a se nutrir das ameaças implícitas contidas em um clima de guerra. Cook destaca muito adequadamente a natureza sólida do vínculo entre a economia e a guerra:
Os planejadores do governo pensam ter encontrado uma fórmula mágica para uma prosperidade sem limites. Começam mesmo a julgar que tem algo como o moto contínuo. A Guerra Fria é o catalisador. A Guerra Fria é uma “bomba automática”. (Cook, 1966, pag. 156).
Esse vínculo é ainda acentuado fortemente em outra passagem, na qual o autor demonstra como ela, assim como a guerra mundial, estimula a produção militar, o que ajuda a combater o desemprego, mantendo-o em níveis insignificantes, além de estimular a procura de mercadorias e acelerar o avanço tecnológico, o qual Marcuse, que parece aqui participar de visão bem próxima da do autor, associa com o crescimento da dominação. Cook acaba por caracterizar com precisão esse vínculo afirmando que um representante do complexo industrial-militar poderia afirmar “Podemos agradecer aos russos terem ajudado o capitalismo dos Estados Unidos da América a funcionar melhor do que nunca...” (156)
O autor também destaca que, embora a guerra favorecesse enormemente principalmente alguns setores da economia do país, como os magnatas da indústria bélica e os militares, ela também parecia estimular uma atmosfera de prosperidade geral, que era percebida favoravelmente por muitos dos segmentos sociais ou econômicos do país:
 
Um dos fatores mais graves da questão da defesa é que muitos norte americanos estão se beneficiando...; propriedades, negócios, empregos, votos, oportunidades de promoção, salários mais elevados para cientistas e tudo o mais... Quem tentar alterar as coisas encontra-se logo em dificuldades.... (Cook, 1966, pag.151)
 
A relação direta entre Guerra Fria e dinamismo econômico também foi enormemente fortalecida em alguns momentos em que o conflito foi consideravelmente acirrado. Bons exemplos são tanto a destruição de um avião de reconhecimento – ou de espionagem – estadunidense, com a consequente captura de seu piloto, no espaço aéreo soviético, fato que anulou imediatamente os avanços políticos obtidos pela diplomacia dos dois países, quanto a descoberta da bomba de Hidrogênio por parte dos Estados Unidos. Cook cita muito apropriadamente a respeito um trecho da reportagem da revista U.S.News Word Report, que afirmava:
O que a bomba de Hidrogênio representa para o mundo dos negócios: um longo período de grandes encomendas.Nos próximos anos, os efeitos da nova bomba continuarão aumentando. Como especialista, já disse: a bomba H destruiu qualquer idéia de depressão. ( Citado por Cook, 1966, pag. 157)
O significado mais espetacular da associação entre Guerra Fria e desenvolvimento econômico – ou antes, dinamismo econômico sustentado pelo crescimento desmedido da indústria bélica - não passou despercebido por Cook, embora aparentemente ele não tenha explorado suficientemente esse aspecto. A dependência da economia à temperatura da Guerra Fria foi, por um lado, possível graças à conquista do apoio popular por meio do uso sistemático da publicidade geradora do pânico, que ajudou a despertar, como já foi mencionado, tanto o sentimento patriótico da população quanto sua coesão e, por outro, do decidido apoio do conjunto de forças sociais que, anos antes, se sentiu prejudicada pela adoção das reformas políticas decorrentes da adoção da política do New Deal. Se já no final da década de 1930 ela forçou uma mudança de orientação do governo Roosevelt e a consequente adoção de novas diretrizes econômicas, que acabaram por resultar na formação do complexo industrial-militar, logrando assim a inibição de tais reformas, após o fim da Guerra essas mesmas forças sociais encontraram no estímulo ao acirramento da Guerra Fria um meio tanto de acelerar seus negócios quanto de conter, ainda uma vez, os setores sociais que pretendiam apoiar e dar continuidade às reformas acima mencionadas ou estimular a construção de um amplo Estado de Bem Estar Social.
A construção e consolidação de tal Estado não interessavam de modo algum às forças sociais aglutinadas no complexo industrial-militar ou em torno dele. O Estado de Bem Estar Social – do modo como Cook o entende - teria começado a ser implantado no país em decorrência da política do New Deal e conheceria, nos anos seguintes, avanços significativos. Porém, sua implantação sofreu toda sorte de obstáculos e prejuízos, de modo que constantemente o país tem necessidade de lidar com as várias consequências dessa construção obstaculizada ou inibida, como ocorreu no governo Eisenhower em 1957 e também no início do governo Kennedy. Em 1957, a crise foi precipitada porque o presidente liberou uma verba de cerca de duzentos milhões de dólares para gastos sociais e 35 milhões para financiar programas habitacionais, mas isso implicou em redução das verbas originalmente destinadas ao Departamento de Defesa, que, inconformado, desencadeou a crise. No governo Kennedy, este pretendeu oferecer assistência médica para os idosos, mas isto foi violentamente combatido como sinal evidente de que essa administração estaria sobre influência de ideias socialistas ou mesmo do governo soviético!
Esse embate parece ter se tornado um fato constante da história social e política dos Estados Unidos após 1939: toda vez que o governo, por iniciativa própria ou pressionado por forças sociais atuantes, decide acelerar a implementação de um aspecto ou de um setor compatível com a configuração do Estado de Bem Estar Social, as forças sociais beneficiárias do Estado Beligerante tratam de promover as mais diversas acusações, desencadeando também intensas campanhas publicitárias apetrechadas a convencer a população de que isso representaria um enorme risco, não apenas por tornar o país mais vulnerável ao inimigo, como também porque a economia poderia parar subitamente de crescer, gerando desemprego e baixa de salário.
Tal procedimento, porém, só foi viável graças à atmosfera emanada da Guerra Fria: desse modo, não seria de todo improvável considerar que essa guerra, objetivamente planejada e administrada pelo complexo industrial-militar, serviu tanto para este expandir seus negócios e poder, além de seus interesses políticos, quanto para conter ou inibir as forças contrárias ou adeptas da construção do Estado de Bem Estar Social. Ou, para dizer de forma mais precisa: a Guerra Fria pode talvez ser interpretada como uma medida complementar destinada, por um lado, a combater os efeitos tardios da recessão econômica originária da década de 1930; por outro, a permitir o controle desse processo pelos magnatas da indústria e das finanças, aglutinados em torno das atividades bélicas. Em outras palavras: para facilitar a expansão da acumulação do capital por parte de um restrito número de beneficiários.
Cook demonstra em sua análise como o dinamismo da economia dos Estados Unidos da América dependeu diretamente do desenvolvimento e prolongamento da Guerra Fria. Demonstra também que o complexo industrial-militar não conheceu limites em sua ânsia de expansão, de modo que pode até mesmo estimular o aparecimento e o desenvolvimento de uma dimensão que nenhuma guerra anterior comportou: a luta pela conquista do espaço, por meio da qual logrou controlar o que acontecia no território inimigo além de poder avaliar corretamente suas instalações militares prescindindo de aviões, a quem, desde a primeira guerra mundial, cabia tal tarefa.
Essa façanha não pode ser desconsiderada não apenas porque doravante ela alteraria profundamente a própria concepção do que seria a guerra, introduzindo novos problemas estratégicos, como também porque acarretou uma vantagem militar e estratégica enorme para o país, que objetivamente pode controlar todos os acontecimentos que interessavam os EUA em todas as regiões do planeta. O desenvolvimento desse novo campo de atividade militar, que atendia sobremaneira os interesses do complexo industrial-militar, foram financiados com verbas estatais conquistadas no contexto da Guerra Fria mediante o expediente de apresentar esse novo campo “como o elemento capaz de criar sólida barreira contra a expansão do socialismo invasor”.
Desse modo, não causa espanto verificar como de fato a indústria bélica, no contexto da Guerra Fria, se tornou o grande motor do dinamismo econômico do país. Alguns dados podem servir para exemplificar ou atestar a grande dependência da economia dos EUA em relação à indústria de armas e de equipamentos militares. Se, por exemplo, for considerado o número de empregos totais da indústria, se verá que a indústria bélica emprega, ao menos em sete Estados, percentagem considerável da totalidade dos empregos industriais: Flórida: 14,1%, Uta: 20,0%, Arizona: 20,6%, Connecticut: 21,1%, Califórnia: 23,3%, Novo México: 23,8%, Washington: 28,6%, Kansas: 30,2%. È de se observar ainda que cerca de 27% dos empregos na indústria bélica no estado da Califórnia são oferecidos, em 1960, na indústria aeronáutica e na produção de mísseis. Cabe também realçar que 1/6 dos empregos industriais concentram-se em três Estados: Texas, Califórnia e Flórida. Neles, a participação da indústria bélica na composição da massa salarial por volta de 1960 era: Texas: 5,5 %, Flórida: 3,8%, Califórnia: 3,7%.
Além da indústria bélica, também o Departamento de Defesa tinha participação significativa na composição da totalidade da massa salarial: 9% dos salários do Novo México e 6.7% dos de Uta provinham das instituições militares relacionadas com a segurança nacional. Esses números indicam a extensão e a profundidade do enraizamento das indústrias de armas e de equipamentos militares, mesmo após o final da Segunda Guerra Mundial. Somados aos gastos perpetrados pelo Departamento de Defesa, que abarca todas as instituições militares, pode-se claramente perceber como tal indústria relacionada às atividades militares compõe o centro nervoso da economia estadunidense. Esses fatos atestam como seria então extremamente difícil alterar os rumos econômicos do país: efetivamente, talvez fosse até mesmo impossível fazer isso.
Cook conclui esse momento da análise constatando que a enorme dependência da economia estadunidense em relação ao conjunto da indústria bélica, que já era então quase irreversível em sua perspectiva, tenderia a ser ainda maior nos anos subsequentes, já que em 1955 - segundo as estimativas então disponíveis - essa dependência aumentaria pouco mais de 30%. Nessa direção, sustenta que quanto mais durasse a Guerra Fria, maior seria essa dependência. Nessa época, para quem pudesse pensar em reunir forças a fim de estimular o aparecimento de uma oposição real e contundente a essa dependência, o cenário não seria nada vantajoso, para não dizer francamente hostil. De fato, as forças sociais que se opunham à intensificação e prolongamento desse conflito ou que, por um motivo ou outro, não desejavam a continuidade do crescimento da indústria bélica teriam que se defrontar com um efeito devastador da desativação desse tipo de indústria: os custos sociais de tal ato seriam gigantescos, pois isso geraria espetacular onda de desemprego, para citar apenas um desses custos. Em certo sentido, o país correria o risco de experimentar grave – e quase incontrolável – período de desestabilização econômica e social, com profundas consequências políticas, enquanto durasse a desmontagem ou conversão da indústria bélica em direção da afirmação de vários tipos de indústria voltados para a vida e o mercado civil.
Cook, porém, mantém aberta essa possibilidade, sugerindo ser ainda possível uma alternativa a ela, a qual implicaria no fortalecimento do Estado de Estar Social. Entretanto, diante da concepção de Marcuse acerca da Sociedade Unidimensional, isso parecia bem pouco crítico: na verdade, fortalecer essa alternativa equivaleria a conferir ênfase a um dos polos dessa sociedade, sem alterá-la substancialmente, já que isso apenas redundaria de fato no fortalecimento do processo de dominação que a caracteriza.
Uma das razões do sucesso da indústria bélica e da dificuldade em desativá-la parece residir na lógica do processo tecnológico que a sustenta e garante. A tecnologia, como Marcuse destacou em diversas ocasiões, não é algo neutro nem o resultado necessário do desenvolvimento histórico. Nesse aspecto, a concepção desse autor é tão clara quanto incisiva: ela se insere em um projeto histórico determinado, projeto esse sustentado por uma classe social específica, com vistas ao crescimento constante do processo social de dominação. Nesse sentido, enquanto meio de dominação, ela parece sempre criar em seu desenvolvimento mecanismos que reforçam e ampliam a concretização dessa meta. Dentre esses mecanismos inscritos em sua lógica interna é possível identificar seu autoplanejamento, que regula e orienta seu desenvolvimento.  Parte decisiva disso é a obsolescência planejada, ou seja, a planificação do envelhecimento do produto e, muitas vezes, até mesmo dos processos que os constituem ou produzem. Em outras palavras: a vida útil de um objeto tecnológico, ainda que de uso militar, não é determinada diretamente nem por seu tempo de uso nem pela pura fadiga dos materiais nele utilizados – que também são cientificamente planejados – mas pelas alterações introduzidas no processo tecnológico, que produzem o envelhecimento de seus produtos, mesmo que recentes ou do verão passado, como ocorre com o sistema da moda. Renato Franco caracteriza com precisão esse processo:
 
A tecnologia impossibilita que cada produto específico resultante do aparato produtivo tenha origem meramente aleatória, ou seja, fruto das possibilidades eventualmente inerentes ao equipamento necessário a sua produção, pois estas, caso fossem efetivas, seriam previamente anuladas ou contidas nos limites estabelecidos a priori pelo sistema tecnológico. Dessa forma, é bastante viável supor que a racionalidade interna à tecnologia também determine (...) suas operações básicas: ...cada produto, ou as modificações nele introduzidas, são determinados a prori, assim como o aparecimento de cada novo produto resultante do desenvolvimento do aparato...” (Franco, 2004, pg.199)
 
Essa passagem esclarece a contento a lógica da inovação tecnológica, realçando como esta resulta de uma operação anterior, “a priori”, que implica o planejamento do envelhecimento do produto. Isso também se verifica no âmbito da tecnologia militar, ou antes, da indústria de armas e de equipamentos militares. Esse mecanismo confere às indústrias o poder de introduzir determinadas inovações em seus produtos – como tanques, aviões, armas leves ou pesadas, etc. – que tornam ultrapassados e ineficazes os até então produzidos. A tecnologia, como salienta ainda Franco fazendo eco a uma observação de W. Benjamin, torna o mais recente antiquado, de modo que o mais moderno subitamente pareça um anacronismo de tempos antigos ou distantes. No campo da indústria bélica, ela força dessa maneira o Estado a liberar constantemente mais verba para a aquisição dos produtos “de última geração”, que bem rapidamente serão transformados em sucatas. Esse mecanismo constitui um dos cernes do Estado Beligerante, o qual é virtualmente impossível de ser interrompido, quebrado ou neutralizado.
Cook destaca ainda outro aspecto fundamental do Estado Beligerante ao indagar em que instância ou local de poder é decidida de fato sua continuação e expansão. O esclarecimento dessa dimensão sem dúvida complementa o que foi acima destacado, que demonstra o valor das mudanças tecnológicas por meio da obsolescência planejada, enquanto mecanismo destinado a forçar o Estado a comprar ininterruptamente mais armas e mais equipamentos militares, quaisquer que sejam. Nessa direção, o autor destaca tanto o papel e a importância da propaganda quanto do sistema conhecido como “portas giratórias”, que de fato é aqui decisivo. Além dessas instâncias, o autor identifica também a consolidação de outra fonte de poder entre as instituições nacionais: o Pentágono.
Este fato revela o inusitado crescimento do poder militar, que restringe e míngua o poder civil em quase todas as áreas. Salienta o autor, “o departamento em que isso mais se verificava era no de Estado, onde depressa surgira a moda de considerar os militares como sendo nossos orientadores nos negócios estrangeiros.” (Cook, obra citada, pag.178)
O avanço do Departamento de Defesa sobre o Departamento de Estado parece ter sido desde então uma constante, resultando na militarização da política externa do país -fato que Cook identifica muito bem. Isso obviamente afetava a qualidade da vida democrática: “A democracia de roda livre estava (....) tornando-se menos livre”, diz ele. A instituição que mais expandiu seu poder nesse processo teria sido o Pentágono, ainda segundo Cook:.
 
No Pentágono, desenvolveu-se aquilo que em qualquer outro país, exceto na nossa democracia de roda-livre, seria apelidado de militarismo – ou seja, o controle militar da política estrangeira... (pag.179)
 
Os efeitos da militarização da política externa não demoraram a aparecer. Eles aumentaram enormemente as tensões da Guerra Fria e criaram condições para minar qualquer negociação ou solução política, já que, nessas circunstâncias, os militares estadunidenses rearmaram a Alemanha e criaram várias bases militares na Europa, procurando assim cercar militarmente a URSS o máximo possível. Os Estados Unidos, nesse momento, já eram então um país bem distinto daquele que por anos adotou e manteve uma postura isolacionista.
 
II
Posteriormente ao fim da Guerra Fria outras análises retomaram a investigação do desenvolvimento daquilo que este trabalho denomina de Estado Beligerante e também do Complexo Industrial-Militar. Dentre essas, destaca-se a importantíssima obra de Chalmers Johnson, que escreveu, em 1990, Blowback e, em 2004, As ameaças do Império: militarismo, secretismo e el fim da República. , que poderia ser considerada como herdeira daquela elaborada por F. J. Cook. Segundo o autor
El presente libro, Las amenazas del Imperio, representa una continuación de Blowback. Allí sostenía que el gobierno estadunidense todavía actuaba, en gran medida, como lo había hecho durante la Guerra Fría, y subrayaba la posibilidad de que estallara un conflicto en el este asiático. Sin embargo, no me centre en el extensión del militarismo, ni en el inmenso imperio de bases militares que havia surgido casi sin ser detectado y que en la actualidad constituye un hecho geopolítico. (Johnson, 2004, p. 19)
 
para acrecentar que:
 
el tema del libro de 2004 é o militarismo estadunidense y su presencia física en el mundo”, el crecimiento de los “fuerzas especiales”- y el secretismo que permite a organismos cada vez mas militarizados y herméticos existir y desarrollarse. (Ídem, p. 20).
 
A obra inicial desse autor analisa, de modo crítico e sem condescendência a qualquer tipo de antiamericanismo, a ação e o comportamento político dos EUA em uma região – o leste asiático – a fim de demonstrar não haver neles qualquer ruptura em relação ao “modus operandi” do país durante a Guerra Fria. Tal análise, que de certo modo funciona muito adequadamente como uma resposta à questão inicialmente formulada nesse ensaio, desemboca, no livro seguinte, no exame implacável da construção, longamente gestada pelo país desde o final do século XIX - mas acentuada após o final do referido conflito e, de modo espetacular, principalmente após 2001 – de uma nova postura imperial.
Segundo o autor, esse caráter imperialista é de tal ordem e magnitude que só pode ser entendido adequadamente se referido ao Império Romano. Esta tese, como se pode notar, inscreve-se entre as que sustentam ser esse país imperialista, mas radicalizando-a ao reconhecer que constitui a “nova Roma”. Além disso, essa tese está relacionada na obra a outra: para ser a Nova Roma, é necessário não só minar a estrutura política republicana e democrática, mas também militarizar as principais atividades e setores do Estado, de modo a transformá-lo em um Estado Beligerante, para usar o conceito adotado – e justificado – nesse trabalho.
O autor justifica tal tese apoiando-se inicialmente na história política do país que, desde o final do século XIX - com a concepção que afirmava ser a América Latina sua área de influência - é interpretada como voltada à construção de uma postura imperial. Esta construção conheceria no século XX um momento decisivo: a guerra contra a Espanha, cujo saldo foi a instalação de bases militares em vários países da América Central. O reforço decisivo na construção do imperialismo viria com o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), já que, por sair dela vitorioso, reconhecido como o mais rico e poderoso, pode se autoproclamar como o sucessor legítimo do Império Britânico. Com a Guerra Fria, justificada como necessária para a contenção do ímpeto expansionista tanto da URSS quanto dos ideais socialistas ou comunistas, o país teria enfim encontrado a ocasião para abandonar um imperialismo “soft”, “light” ou “virtual” para assumir um imperialismo efetivo, “duro”, por meio da proliferação, nas mais diversas regiões, de bases militares.
Essa concepção é inovadora por interpretar como atitude expansionista e imperialista a construção de bases militares. Entretanto, a interpretação exige o exame de duas outras questões, a saber: porque os EUA não eram então considerados, inclusive por sua própria população, como imperialista? E o que são efetivamente as bases militares e para que servem? Johnson defende a tese de que o processo de construção do caráter imperialista não foi percebido pela população e que, ao mesmo tempo, os ideólogos do período souberam produzir uma imagem positiva e justificadora da ação e do comportamento imperial, já que divulgava a visão de que tudo o que o país fazia era ditado pela necessidade de reagir ao “bloco do mal”, isto é, a URSS. Os EUA se apresentavam na dimensão ideológica do conflito como um “imperialismo do bem”, conduzido a esta situação pelos outros países, que o estimulavam a liderar e a defender o chamado “mundo livre”. Obviamente, essa visão serviu para de fato encobrir o crescimento do império e, consequentemente, da expansão do poderio militar. O autor parece aqui retomar e dar continuidade à análise empreendida por Cook, inclusive demonstrando que o tema da luta dos países “do bem” contra os “países do mal” não é recente na história política estadunidense: o termo “eixo do mal”, posto em voga pela administração Bush, seria apenas a versão mais recente desse tema.
Após o final da Guerra Fria, argumenta o autor, o caráter imperialista do país conheceu desmedido crescimento, pois os ideólogos do período perceberam que a autodissolução do mundo soviético criaria as condições próprias para o país se fortalecer como potência imperial; no entanto, mesmo nessa época, relutaram falar em “imperialismo”. Ao contrário, preferiram usar o conceito de “superpotência” - que não deixa de ser intimidador - e a afirmar que o país e o mundo mudaram radicalmente apenas após o atentado do 11 de setembro de 2001. Johnson, porém, recusa tal visão demonstrando a natureza ideológica dela, já que serviu tão tem para justificar as atitudes beligerantes adotadas freneticamente pelo governo Bush. Essa ideologia teria inclusive afetado obras que se pretendem críticas, como a de Benjamin Barber, intitulada O império do medo: guerra, terrorismo e democracia.
 
A los estadunidenses les gusta decir que el mundo cambió a consequência de los ataques terroristas de 11 de setiembro contra las torres gemías y el Pentágono. Sería más exacto afirmar que los atentados generaran un peligroso cambio en la forma de pensar de algunos de nuestros líderes, que empezaran a considerar nuestra república como un auténtico imperio e una nueva Roma, el mayor coloso de la historia, no atado ya por leis internacionales, las preocupaciones de sus aliados o algún tipo de restricción respecto al uso de su poderío militar” (Johnson,2004, p.10).
 
Nesse ponto, a tese defendida por C. Johnson é bem clara: o país de fato acabou por enfraquecer consideravelmente a república e sua estrutura democrática - que já vinham sendo minguadas durante o transcorrer do século XX - para adquirir por fim a feição indiscutivelmente imperial após essa data, ou seja, 2001. Essa transformação ofereceu o motivo do livro: “Este libro es un guia del império americano en el momento em que abiertamente empeza a extender sus alas” (p. 10). Para o autor, o governo Bush, assim como o processo que o conduziu e o instalou no governo, representa a eclosão de um momento no qual se concretiza um risco potencialmente presente no país desde a época da Guerra Fria: a de que as decisões mais importantes e a vida política em geral fiquem dependentes dos militares ou de adeptos civis do militarismo, que professam soluções radicais e armadas para todo e qualquer conflito. F. J. Cook destacou que, apesar de tudo, ao menos até os anos 60 esse tipo político tresloucado, adepto em geral da “solução final” e avesso a qualquer negociação política, não logrou ser alçado aos postos mais importantes de comandos. Em contrapartida, Johnson afirma que tal tipo de “maluco” enfim chegou ao poder, inicialmente de forma contida no Governo Reagan e de modo incontrolável na administração Bush, como se pode observar nessa mensagem do presidente:
 
Los estadunidenses hemos de estar preparados pra actuar de forma preventiva siempre que seja necessário para defender nuestra libertad e nuestra vida...En el mundo que nos hemos adentrado el único camino para la seguridad es la accion. Y este pais atuará (G.W.Bush, citado por Johnson, 2004, pag.12).
 
O império americano, concebido dessa maneira, é portanto associado a uma enorme expansão do poderio militar em uma época que, ao menos antes de 2001, tinha condições objetivas para diminuí-lo e até mesmo desmantelá-lo razoavelmente. Johnson, porém, realça que tal forma de império não se limita a fomentar o crescimento contínuo do poder militar, mas, sobretudo, que também permite a militarização de organismos estatais, que se tornam cada vez mais herméticos e, assim, opacos às relações e às estruturas democráticas. Além disso, ele tece e constitui uma extensa “rede de interesses políticos e econômicos” que o vincula de “muitas formas distintas às mais diferentes empresas, universidades e comunidades americanas” (p. 11), chegando por fim a “modificar a sociedade”, ou antes, sua forma de organização política. Para exemplificar, o autor demonstra como “o Departamento de Defesa começou a eclipsar o Departamento de Estado e a ocupar sua posição como principal organismo no planejamento e gestão da política exterior” (p. 12). Essa visão, se por um lado corrobora a percepção original elaborada por F. J. Cook, que já destacava como sintoma da construção do que é aqui chamado de Estado Beligerante a militarização da política exterior estadunidense, conduzida pelo Departamento de Defesa em detrimento do Departamento de Estado, verificada durante o desenvolvimento da Guerra Fria, por outro lado contraria tal percepção ao localizar esse acontecimento em uma temporalidade diversa, posterior a esse conflito.
Outra face do imperialismo dos EUA é formada, ainda segundo esse autor, pelo espantoso número de bases estadunidenses no exterior, que abrigam um contingente operacional e militar em torno de 500 mil pessoas. Até o final da Guerra Fria, diz ele ainda, “o país possuí 725 bases conhecidas em várias regiões do mundo”; porém, de forma surpreendente mas sintomática, esse número, ao invés de diminuir após o fim dela, aumentou incessantemente. É também de se notar que muitas destas bases são secretas, não tendo existência oficial conhecida. Sua expansão quase indiscriminada conduz o autor a indagar quais seriam atualmente suas funções reais: ele sugere que, entre outras, elas significam o poder dos EUA, servindo para intimidar e desestimular seus opositores, servindo também para abrigar e manter confortavelmente o pessoal empregado pelo Departamento de Defesa no exterior, normalmente exercendo atividades destinadas a pressionar autoridades do país em que estão localizadas a fim de viabilizar o conjunto de negócios e de interesses norte-americanos na região.
Entretanto, se o autor reserva um capítulo do referido livro para examinar detalhadamente essa questão, é porque aponta outra função dessas bases: elas serviriam para apoiar ações desestabilizadoras ou ilegais, patrocinadas pelos EUA. Nessa direção, Johnson analisa tanto as ações organizadas e empreendidas pela CIA quanto o declínio posterior dessa agência, verificado no governo Bush:
 
Parte essencial do crescimento do militarismo en Estados Unidos, la CIA há evolucionado até convertirse em el ejército privado del Presidente, quiem a emprega en projectos secretos que el ... deseja ver realizados... (Johnson, p. 18).
 
A participação da CIA e das Forças Especiais em ações ilegais levadas a cabo em territórios estrangeiros situados em diversas regiões é em si mesmo um fato gravíssimo, que coloca os Estados Unidos como nação potencialmente desestabilizadora das lógicas políticas nacionais e mesmo das relações internacionais. Mas é também um sintoma do grau de coesão e de poder do Estado Beligerante, já que tal fato demonstra a diferença entre a atribuição legal de seus organismos e a função real que desempenham, normalmente inscritas na ilegalidade. Estes organismos são aparentemente destinados à análise de informações, mas de fato servem para planejar e executar ações ilegais. Isto, sem dúvida, incentiva o crescimento regional e mesmo mundial de desconfiança e de temor contra os Estados Unidos, não raro criando o solo adequado para o crescimento daquilo que o autor denominou de “efeito bomerang” das ações políticas estadunidenses no exterior. Esclarecidos esses fatos, não é surpreendente constatar que “os organismos de inteligência gastam mais que a soma dos Produtos Nacionais Brutos da Coréia do Norte, Irã, Líbia e Iraque”. (idem, p. 20). A análise de C. Johnson aponta conclusivamente que
 
Como resulta inevitable que el militarismo, la arrogancia del poder y los eufemismos necesario para justificar el imperio entren en conflicto con la estructura democrática del gobierno de Estados Unidos y distorcionem su cultura e sus valores fundamentales, temo que los americanos estamos perdiendo nuestro país. (Johnson, p. 19-20).
 
Esta visão aponta, por um lado, que a transformação da ação e do comportamento político do país, associada à configuração do Estado Beligerante, redunda em uma destruição do seu caráter democrático e republicano, penosamente construídos durante a época em que sua história política se apoiava no isolacionismo. Por outro, indica que tal fato pode implicar a destruição da hegemonia global dos EUA: “[...] y no está escrito em ninguna parte que Estados Unidos, em su modalidad de império mundial, deva durar para siempre.” (Johnson, p. 21).
Em outros termos, sua análise aponta tanto para o que, com certa imprecisão, poderia ser denominado de “des-democratização” quanto para a problemática do declínio: se esta última parece emergir de boa parte da bibliografia recente sobre o país, o fenômeno da des-democratização, embora sugerido por Cook, somente desponta muito recentemente na bibliografia crítica especializada (o termo “des-democratização” foi utilizado por Rolf Uesseler no livro A guerra como negócio – como as empresas militares privadas destroem a democracia (2006), que analisa as tendências ilegais da economia mundial).Por fim, convém salientar ainda que Johnson considera que “..] el crescimiento del militarismo y del secretismo oficial es probablemente un fenómeno irreversible” (Johnson, 2004, p. 19).
 
Considerações finais
Além desses autores, muitos outros também apontam o caráter beligerante que os Estado Unidos adotaram particularmente após 1939, quando se tornaram grandes produtores de armas e equipamentos militares, que, como foi salientado, determinou a configuração do Estado Beligerante e a formação do complexo industrial-militar. A maioria deles também sustenta que esse caráter beligerante não foi atenuado, tendo, ao contrário, se intensificado mesmo após a Guerra Fria e adquirido contornos gigantescos após o ataque às torres gêmeas em setembro de 2001, embora divirjam quanto às motivações disso: enquanto para uns esse fato resulta diretamente do vínculo entre produção bélica e dinamismo econômico, para outros, como Wallerstein, é justamente o declínio econômico do país no cenário mundial que recrudesce seu caráter beligerante.
Dessa maneira, Emmanuel Todd pode afirmar que os Estados Unidos desenvolvem atualmente um “militarismo teatral”, que compreenderia três elementos essenciais: 1. Nunca resolver definitivamente qualquer problema regional, a fim de justificar a ação militar dos EUA indefinidamente; 2. Escolher como alvo das ações militares apenas países militarmente “nanicos”; 3. Continuar o programa de desenvolvimento contínuo de novas armas tecnológicas. Esse militarismo continua a implicar o desenvolvimento de novas armas e equipamentos militares, fato que atende aos apetites vorazes do complexo industrial-militar, que parece ainda hoje a determinar a política externa do país, qualquer que seja o governante ou o partido político no poder. De fato, seu gigantismo militar não encontra correspondente algum, não existe globalmente um rival à sua altura. Enquanto mundialmente ocorre uma diminuição do orçamento militar, verifica-se nos EUA um movimento contrario:
 
Até 2001 o pressuposto militar estadunidense equivalia a 36% do total mundial, seis vezes o tamanho da segunda potencia planetária, a Rússia e sete vezes o tamanho dos três seguintes: França, Reino Unido e Japão. O orçamento estadunidense para 2003 equivale a 40% do total mundial, superando o gasto combinado dos 24 países seguintes, sendo 25 vezes maior que o gasto combinado dos sete “Estados Fora da Lei” identificados pelos Estados Unidos como seus inimigos. (Idem, p. 29 minha tradução)
 
Esses dados demonstram muito apropriadamente que os EUA são um gigante militar e que, em função disso, se tornaram bastante perigosos para o restante do mundo: com efeito, nenhum outro país é capaz de rivalizar com a potencia ofensiva de seus aviões, barcos, mísseis, tanques, armas inteligentes – nas quais detém a dianteira no domínio do conhecimento, da tecnologia e da produção. O desenvolvimento dessa fenomenal capacidade de fogo seria decorrência, segundo Michael Mann, de uma “revolução nos assuntos militares” (RAM) ocorrida no final do século XX.
 
A expressão foi cunhada em 1993 pelo guru do Pentágono Andrew Marshall para fazer referência a uma importante transformação na natureza das técnicas militares, produzida pela aplicação de novas tecnologias, que juntamente com algumas mudanças na doutrina militar, nos conceitos operativos e organizativos alterou de modo essencial a natureza e a direção das ações militares. A RAM combinava a precisão das bombas e dos mísseis de grande alcance, guiados por satélites e radares, com a “guerra informatizada”. Uma das principais armas desenvolvidas com a RAM e que não está ligada a artilharia nem às bombas é o Global Hawk (Falcão Global), um avião de reconhecimento que proporciona ao comando militar imagens quase em tempo real dos alvos em terra. Este aparato voa a 20.000 metros de altitude e informa o ponto exato sobre o qual deve ocorrer o ataque. (Idem, p. 34, minha tradução)
 
 A RAM seria responsável pelo que os meios de comunicação de massa - reproduzindo uma expressão surgida no Pentágono - definiram como “guerra e ataques cirúrgicos.” Uma metáfora capaz de fazer referência à precisão dos ataques, eficiência na destruição dos alvos, com risco mínimo de baixas estadunidenses. Teria ainda contribuído para o desenvolvimento da tecnologia dos aviões não tripulados; das minas com sensores de identificação de veículos em movimento, capazes de se deslocar na direção do alvo; das “armas a laser, microondas e impulsos eletromagnéticos” capazes de afetar, danificar ou paralisar todo tipo de circuito eletro eletrônicos.
 
Referências bibliográficas
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WALLERSTEIN, Emanuel. O declínio do poder americano. Rio de janeiro, Contraponto,2004.


* Universidade Federal de Lavras

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