No começo do século XX, vários autores, especialmente os de inspiração marxista, constataram mudanças históricas fundamentais no capitalismo, que havia passado para um estágio monopolista, de grande concentração industrial e integração com os bancos. No caso dos marxistas, estas mudanças adquiriam uma importância adicional, pois implicavam novas posições na luta revolucionária contra um sistema ainda mais forte. Lukács, que elaborava então uma reconstituição do pensamento de Marx a partir do conceito de fetichismo, percebeu que este poder do capital também se tornara mais forte com as mudanças ocorridas. Como seria então possível desenvolver-se a consciência de classe revolucionária, se a ela se oporiam os mecanismos de um fetichismo assim fortalecido? Esta questão, central na História e Consciência de Classe, repercute hoje ainda com mais intensidade, diante dos novos instrumentos do fetichismo e, por outro lado, da crise profunda em que nos encontramos e que talvez esteja apenas no início. Trata-se, também nestes nossos tempos, de avaliar se a própria crise não poderia servir para destruir as ilusões neoliberais sobre a capacidade do capitalismo proporcionar uma sociedade desenvolvida e igualitária, ou seja, se uma crise pode contribuir para a desmistificação crítica do fetichismo. Num sentido muito próximo do de Lukács, a presente comunicação pretende enfocar o problema retomando alguns textos estratégicos de Marx.
Nos escritos de Marx, os tópicos referentes a uma teoria história, como os que aqui nos interessam, são tradicionalmente considerados como formando um todo rígido. A dialética das forças produtivas e das relações de produção, as crises que acontecem necessariamente, do mesmo modo que as revoluções sociais, e inclusive o poder avassalador do fetichismo capitalista – a tudo isso é atribuído um caráter de “lei”, mediante o qual as explicações históricas seriam possíveis. Neste caso, as questões acima propostas sobre a relação entre os movimentos do capital e a consciência de classe, poderiam ser respondidas de duas maneiras: ou se pode esperar que ocorram ainda revoluções, mas bastaria deixar correr os processos sociais e econômicos que irreversivelmente levariam a elas; ou, ao contrário, nos tempos atuais nada de semelhante a uma revolução poderia mais se verificar, dada a articulação extremamente poderosa do sistema capitalista e a opacidade mesma de sua articulação para a consciência.
O dilema entre estas duas posições aparentemente contrárias, embora próximas em seu fatalismo, só pode ser superado pela redefinição do conjunto de categorias envolvidas nesta visão rígida da história.
De fato, a reconstituição minuciosa de tais categorias dentro da teoria de Marx revela que elas não indicavam processos tão inflexíveis. A concepção na qual o progresso das forças produtivas e as crises se alternam com a rigidez de um ciclo natural, ou em que predomina também um ou outro destes movimentos de modo absoluto, é uma interpretação unilateral e limitada do pensamento de Marx a respeito da história. Por outro lado, ele não considerava que estes movimentos econômicos e sociais fossem resultado de simples acaso. Eles corresponderiam, ao contrário, a tendências necessárias do sistema capitalista, que ora se manifestam como expansão e progresso técnico e social, ora como crise e retrocesso nestas mesmas dimansões.
O problema, porém, passa ao campo conhecido na história da filosofia e da lógica como o das “modalidades”: os eventos se dão de modo necessário, inevitável, ou apenas de modo possível? Consideremos o momento da expansão. Ele ocorre, para Marx, porque o capital é uma relação social com poder de subordinar a si as demais relações sociais, convertendo-se numa totalidade da qual elas são simples momentos. Ou seja, de acordo com sua própria definição, o capital tem uma força totalizante, uma potência de realizar suas determinações constitutivas. Impõe-se, por isso, a tarefa de investigar de que modo se realiza esta determinação, isto é, se ela se realiza apenas possivelmente ou necessariamente.
O mesmo ocorre se consideramos o momento da crise. Nela se manifesta o lado contraditório do capitalismo, conforme o qual na relação social entre o capital e o trabalho assalariado predomina o aspecto negativo, de oposição entre ambos, impedindo o avanço do processo de valorização. Mas isto acontece exatamente quando e de que maneira? As condições da crise estão contidas necessariamente ou só possivelmente nas condições da fase de expansão? Se a expansão leva fatalmente à crise e esta, por sua vez, a uma nova expansão, então como convivem as duas tendências opostas dentro da mesma relação social? Mas se a expansão conduz só possivelmente à crise, e esta também só possivelmente a uma nova expansão, então elas seriam tendências casuais e não imanentes do processo capitalista, ao contrário de tudo o que Marx pensou. Examinemos mais de perto o problema.
Tradicionalmente, da análise do capitalismo de Marx deduziu-se que este sistema se movimenta basicamente na forma de tendências ou de ciclos, ou ainda de uma combinação de ambos, em que tendências se afirmariam através de uma série longa de ciclos de expansão e crise. Ora, se não ocorrerem de modo necessário, os próprios conceitos de “ciclo” e de “tendência” deverão ser repensados, porque um ciclo ou uma tendência que pode não ocorrer, não corresponde ao que se entende quando se emprega tais conceitos. Por outro lado, se eles forem considerados como acontecimentos inevitáveis, pode-se prever que o capitalismo fatalmente chegará ao colapso ou, ao contrário, que se eternizará, conseguindo controlar o impacto de suas crises e mantendo-se indefinidamente. Este foi justamente um dos debates clássicos do marxismo no tempo de Lukács, em torno da famosa Zusammenbruchstheorie, de enorme impacto político.
Para resolver a questão, é interessante retomar a definição mais genérica de crise apresentada por Marx: “a crise manifesta [...] a unidade dos momentos reciprocamente autonomizados” [Theorien, II: 501 (Teorias, II, 936)]. Ou seja, os momentos opostos dentro do sistema capitalista – como mercadoria e dinheiro, compra e venda, capital industrial e capital financeiro – aparecem não só separados numa crise, mas na separação mesma se evidencia a impossibilidade deles se determinarem isoladamente; tal separação contraria a unidade necessária deles.
Marx diz, então, que se os momentos ou fases cindidas pela crise “fossem somente separadas, sem serem uma, então não seria possível nenhum estabelecimento violento de sua unidade, nenhuma crise. Se elas fossem apenas uma, sem serem separadas, então não seria possível nenhuma separação violenta, o que novamente é a crise” [Theorien, II, 514 (Teorias, II, 948-949)]. A crise evidencia que a separação dos momentos só é “violenta” porque revela a sua necessária unidade, pois é a relação entre ambos que os define como termos distintos. A definição da crise depende, portanto, de que unidade e separação sejam igualmente necessárias. Se uma delas fosse apenas casual, a outra poderia predominar, mas aí seria negado o “estabelecimento violento da unidade” ou “a separação violenta”. Neste sentido, nenhuma das duas necessidades predomina de modo absoluto; elas são relativas, definindo-se cada qual como necessidade através da relação com a outra.
O problema é que esta relação fica oculta enquanto está se realizando uma das alternativas, pois então uma delas – crise ou expansão – tem necessariamente de predominar sobre a outra, ocorrendo como se fosse a única, absoluta, diante da qual a outra seria mera possibilidade.
No caso mais específico da famosa tendência à queda da taxa de lucro, pela qual Marx teria apontado o limite histórico do capitalismo, ocorre também o mesmo jogo entre momentos e sentidos opostos. Por um lado, ele enuncia os fatores que levam à queda da taxa, mas, por outro, ele enuncia os fatores que chama de “contra-atuantes”. É sabido que Marx procurou demonstrar o predomínio da queda da taxa de lucro a longo prazo, apesar de interrompida por movimentos contrários passageiros, o que justamente a definiria como tendência. E ao chamá-la de “lei”, deduzida das determinações imanentes do capital, atribui a ela o estatuto de necessidade; que não é absoluta, contudo, por ser tendência, ou seja, uma determinação que não se realiza sempre, que se alterna com momentos em que se realiza o seu oposto. Este oposto da tendência à queda são os momentos em que a taxa de lucro se eleva. Como eles de fato podem acontecer, aparecem sob o estatuto de possibilidade, o que atenua a fatalidade com que ocorre a queda tendencial e faz desta uma necessidade apenas relativa.
Mais ainda, contudo. O modo com que Marx expõe a força destas condições “contra-atuantes” deixa claro que elas também são manifestações da natureza do capital, de sua potência totalizante e expansiva. São, assim, necessárias e não só possíveis. Como a sua realização não é inevitável, porém, a elevação da taxa de lucro que elas provocam é um fenômeno tão tendencial e relativo quanto a queda desta taxa.
De qualquer forma, estes raciocínios não pretendem negar a existência de tendências e de ciclos. Eles são possíveis, e não como simples acaso decorrente apenas de contingências externas ao sistema capitalista, mas também como realização de potencialidades imanentes do capital - portanto, necessárias. A ocorrência de um ciclo e a verificação de uma tendência ao longo de alguns ciclos ou num certo espaço de tempo se explicam necessariamente em função destas potencialidades. Explicam-se, apenas, porém não são determinadas exclusivamente por estas últimas.
E isto é assim, porque o capital é contraditório, na sua relação de simultânea inclusão e exclusão do trabalho vivo. Nesta dupla relação, definem-se dois conteúdos opostos, dois fundamentos igualmente necessários que se exteriorizam em realidades diferentes: automensuração ou desmedida; autovalorização ou desvalorização; expansão ou crise. Ambos são necessários, mas nenhum absolutamente necessário, porque não têm diante de si apenas possibilidades e contingências que podem ser absorvidas e redefinidas em função de uma necessidade abrangente. Cada qual se defronta com um conteúdo necessário oposto, irredutível em sua necessidade e limitador em sua oposição.
Cindido em seu interior por sua contradição essencial, o capital jamais realiza de uma vez para sempre uma de suas tendências expansivas, obtendo domínio permanente sobre as condições de sua existência. Bem como, por outro lado, ele também nunca realiza definitivamente sua tendência à crise, na forma de um colapso inevitável ou de uma progressiva estagnação até um estado de desvalorização crônica e insuperável. Enquanto expressão necessária da natureza íntima e antagônica do capital, a realização de cada um dos conteúdos encontra, sim, explicação no arcabouço geral do sistema. Mas a própria realização de um deste conteúdos opostos não explica por si só a realização alternativa do outro conteúdo. Assim, um ciclo se explica enquanto resultado necessário de uma articulação possível das disposições constitutivas do capital, não sendo uma necessidade absoluta, completamente autodeterminada e previsível. E o mesmo vale, caso se verifique existir uma tendência específica ao longo de um certo número de ciclos, pois o predomínio gradativo das condições de crise ou de expansão não pode ser deduzido como necessidade absoluta a partir do predomínio lógico de qualquer uma das disposições opostas do capital. Deste modo, o que ocorre, ocorre necessariamente; mas não numa ordem predeterminada. O modo com que se articulam as variáveis, a ordem que resulta desta articulação e, conseqüentemente, a forma com que elas se dispõem no tempo, ou melhor, com que elas definem sua temporalidade, não são de maneira alguma produto de uma necessidade absoluta.
Se o capital é necessariamente processual, conforme sua natureza, não é absolutamente necessária a forma determinada com que este processo se desenvolve no tempo. De sua natureza podem ser deduzidas formas diversas igualmente explicáveis. Abre-se espaço, daí, para a indeterminação e para o papel do acaso na decisão sobre as formas efetivas assumidas pelo movimento do capital.
As dificuldades encontradas pelo próprio Marx em estabelecer precisamente a forma de realização e o resultado das “leis” do capitalismo derivam justamente da complexidade do estatuto da necessidade relativa de que tais “leis” se revestem. Enquanto necessidade, elas se apresentam como “leis férreas”, seja da expansão do capital, seja de sua crise inevitável; mas em sua relatividade, elas parecem adquirir o caráter de simples possibilidades ou de tendências de longo prazo. Em sua necessidade, elas parecem permitir a previsão de um destino para o capitalismo; mas em sua relatividade, elas implicam sempre contra-tendências que atenuam e postergam os efeitos delas ou que se alternam com estes últimos.
Leituras pouco atentas à complexidade das formas com que se articulam os conceitos na teoria de Marx certamente optam sem grandes problemas por uma versão aparentemente “óbvia” do que ele quis dizer. Mas é sintomático que tenham ocorrido tantos debates entre autores marxistas sobre o problema das crises e sobre o destino do capitalismo, debates que produziram soluções tão díspares como a inevitabilidade do colapso ou a ênfase na capacidade de regeneração do sistema, concebendo-se a crise como “juízo final”, ou como etapa de crescimento, ou ainda como algo que pode ser evitado. Justamente a variedade destas versões sobre a dinâmica do capital e o acirramento dos debates indicam as ambigüidades que o próprio Marx não pôde resolver, e que uma leitura mais minuciosa e crítica acaba por descobrir. O que se descobre, afinal, é que o modo com que Marx elaborou sua complexa e rica teoria aponta para a indeterminação quanto à forma de movimento do capital, ao mesmo tempo em que demonstra cabalmente a natureza processual que ele possui enquanto relação social historicamente circunscrita.
Para resolver este impasse, alguns autores buscam a inevitabilidade das tendências de longo prazo ou das crises cíclicas no campo extra-econômico: nas variáveis da política econômica, para o curto prazo, e nas transformações tecnológicas e institucionais mais lentas e profundas, para o longo prazo. Também aqui a inevitabilidade pretendida está destinada a não poder ser demonstrada. Deve-se salientar, contudo, que este tipo de explicação proporciona de fato explicações mais completas para o já ocorrido, até devido ao simples acréscimo de novos elementos aos puramente econômicos. A consideração das transformações tecnológicas e institucionais e das variáveis da política econômica permite entender como se resolve a indeterminação mais profunda do sistema quanto à sua forma de movimento. Ou seja, se a oposição de tendências igualmente necessárias leva a uma tal indeterminação, ela é superada no momento de realização das tendências. As grandes mudanças possíveis na orientação política ou no aparato tecnológico-institucional que serve de suporte para a acumulação podem determinar o fim de uma etapa de predomínio de uma tendência e o início do predomínio da outra, configurando ciclos de curto e de longo prazo e decidindo momentaneamente a forma de realização destas tendências no tempo.
Por outro lado, é preciso ter em mente que estas transformações adquirem o papel determinante apenas porque atuam sobre as condições imanentes e necessárias do sistema. Elas não possuem uma necessidade própria que funcionasse como uma intervenção externa ao sistema, para conferir a ele a necessidade absoluta que suas tendências internas não podem jamais alcançar. As transformações em questão são internalizadas, reforçando uma tendência já manifesta ou se opondo a ela em favor da passagem à tendência antagônica. O modo com que se processa tal internalização é ele próprio indefinido ‘a priori’, impedindo qualquer prognóstico absolutamente certo quanto à forma de movimento resultante, embora as explicações do passado adquiram, ‘a posteriori’, a aparência de certeza.
Finalmente, mudanças políticas, tecnológicas e institucionais, apesar de terem relação com as condições do momento histórico em que se produzem, não são completamente determinadas por tais condições, não estão inteiramente contidas nelas Por mais completo que seja, um conjunto de condições nunca é totalmente subordinado a uma tendência única, porque a necessidade tem sempre duas faces opostas. É este caráter relativo das necessidades antagônicas que constitui, assim, a principal objeção a qualquer tipo de determinismo econômico.
O que acontecer será a realização de uma necessidade imanente ao capital; mas com isso não está predeterminado o que vai acontecer e tampouco a forma assumida por sua realização no tempo. Não há como deduzir escatologias a partir da teoria marxiana da sociedade capitalista - não porque o capital não tenha seus fins e sua finitude necessariamente contida nele; também não porque ele não tenha a potência para realizar a ambos; mas porque, justamente ao tê-los, o capital é igualmente o processo de criação e destruição da totalidade de relações sociais, é o movimento de possibilidades opostas cuja contradição igualmente se soluciona e repõe, é o “sujeito” que ao refletir sobre si, igualmente se institui e se dissolve.