24/11/2024
Por , Carcanholo Reinaldo A.
"Todas as nações capitalistas são periodicamente acometidas de um desvario: o de procurar fazer dinheiro sem recorrer ao processo de produção." K. Marx
Introdução
Sem dúvida nenhuma o capitalismo que conhecemos mudou muito nas três ou quatro últimas décadas e isso tem sido apontado por muitos autores, e muitas interpretações sobre essa mudança têm aparecido.
Em nossa opinião, no entanto, por maior que tenha sido a mudança observada, há algo que o capitalismo não conseguiu inventar ainda: como criar riqueza econômica, criar excedente e, em particular, criar lucro a partir do nada. Não conseguiu e jamais conseguirá produzir riqueza e também sua própria remuneração a partir de fumaça. A riqueza econômica é e continuará sendo resultado do trabalho, do trabalho produtivo.
Mas não é isso que a observação direta e imediata da realidade nos sugere, nos indica. No capitalismo atual temos a clara convicção de que as remunerações especulativas surgem como resultado da própria natureza do capital, de alguma propriedade milagrosa sua[1]. O capital especulativo parasitário é, na verdade, a forma que o sistema encontrou como capaz dessa proeza e isso, embora aparente, próprio da dimensão aparencial da realidade, não é uma simples ilusão, como poderia ser pensado.
Trata-se, é certo, de uma manifestação da aparência e de certa maneira é ilusória. Na verdade, é e não é, ao mesmo tempo, ilusória. E essa é a graça do capital especulativo. Ele parece capaz de gerar seu próprio rendimento, mas não passa de um parasita. Há, aí, uma curiosa dialética: o que não é, aparece sendo. O que é, tem a capacidade de aparecer a todos nós como se não fosse. Para entender essa dialética, só apelando para os conceitos de capital fictício e de lucros fictícios, que por certo são e não são fictícios ao mesmo tempo. E isso não é nem brincadeira, nem jogo de palavras: é a dialética do real.
Há certa concordância entre muitos autores no sentido de que uma das características básicas da fase atual do capitalismo, ao lado de outras importantes, é a financeirização, isto é, certa predominância das finanças em comparação com as atividades realmente substantivas do capital[2]. É o caso de François Chesnais, Gerard Duménil, entre muitos outros. Inclusive alguns autores passaram a se utilizar, com um grau maior ou menor de profundidade teórica, do conceito marxista de capital fictício para analisar essa fase.
A dificuldade na utilização teoricamente adequada do conceito de capital fictício está no fato de que ele pressupõe um satisfatório conhecimento e, na presença disso, de uma adequada interpretação da teoria do valor de Marx. Sem eles, o conceito perde significação e capacidade de explicar corretamente a realidade. Se entendido de maneira satisfatória, a compreensão é de que o capital fictício exige remuneração e não contribui em nada para a produção de excedente econômico, de mais-valia. E a pergunta que surge dessa constatação é a seguinte: quem produz essa mais-valia em volume suficiente para atender as exigências do capital, inclusive as do capital fictício? Tal pergunta ganha ainda mais relevância se considerarmos que o que se conhece como reestruturação produtiva no capitalismo contemporâneo teria, segundo alguns, reduzido o papel do trabalho na produção capitalista, pelo menos no que se refere ao trabalho formal e aquele relacionado diretamente com as atividades produtivas industriais. Com isso, como sugerimos, chega-se inclusive a negar o papel do trabalho como central na produção da riqueza, o que, obviamente, do ponto de vista da teoria marxista do valor é fora de propósito.
Dessa maneira, levando em consideração uma adequada interpretação da referida teoria, a característica básica da fase atual do capitalismo, em nossa opinião, é a contradição, que se aprofunda cada vez mais, entre a produção e a apropriação do excedente econômico mercantil, da mais-valia nas suas diferentes formas. É por isso que o conceito de trabalho produtivo (entendido como aquele que produz mais-valia ou excedente na forma mercantil e apropriável pelo capital) ganha relevância nos dias atuais.
É verdade que alguns autores, mesmo próximos da teoria de Marx, apesar de considerarem a financeirização como característica básica da fase capitalista atual, identificam como sua contradição principal a que existiria entre a propriedade e a gestão do capital; contradição entre aquelas frações da sociedade detentoras de diversas formas de títulos de propriedade sobre o capital substantivo[3] e outra, que seria a encarregada da gestão profissional das empresas. É o caso específico de Duménil e Lèvy. A parte do fato de que a identificação de interesses contraditórios entre essas frações proprietárias e gerenciais do capital, como contradição principal do sistema, leva, pelo menos em certos casos, à possibilidade de perspectivas de saídas reformistas para as dificuldades do capitalismo atual, ela pode ser resultado de desconhecimento ou desprezo pela teoria marxista do valor.
Resumindo nossa interpretação sobre a fase atual capitalismo, que denominamos capitalismo especulativo, apresentada em outros trabalhos, podemos dizer que, nos anos 70 e até o começo dos 80, a tendência à queda da taxa de lucro apresentou uma aguda manifestação, em particular nos Estados Unidos e na Europa. As novas inversões substantivas apresentavam perspectiva de reduzida remuneração e os capitais, em parte considerável, por isso, procuram a especulação como saída. Essa tendência foi sancionada pelas políticas neoliberais (expressão dos interesses do capital especulativo) e teve como contraparte indispensável a instabilidade cambiária e a dívida pública dos estados (tanto os do primeiro mundo, quanto os periféricos). O capital acreditou ter encontrado seu paraíso: rentabilidade sem necessidade de "sujar as mão com a produção". E isso de fato aconteceu; lamentavelmente, para ele, por pouco tempo.
É verdade que as remunerações do capital, a partir do início dos anos 80, tenderam a crescer. E então, como isso foi possível? Se por um lado, o ritmo da acumulação de capital substantivo, no conjunto do mundo capitalista, reduziu-se e se, ao mesmo tempo, ampliou-se assustadoramente a taxa de crescimento da massa de capital fictício, especulativo e parasitário, como foi possível o crescimento das taxas de remuneração dos capitais, tanto a dos capitais substantivos quanto a dos parasitários?
A explicação desse fenômeno, para ser coerente com a teoria marxista do valor, só pode ser encontrada no aumento da exploração do trabalho. E aqui devemos nos preocupar especificamente com a exploração do trabalho produtivo. É verdade que, seguindo Marx, também podemos falar de exploração do trabalho não produtivo. Apesar de que o aumento desta última exploração não permite elevar o excedente ou mais-valia produzidos, ao reduzir-se a parcela relativa apropriada pelos trabalhadores improdutivos, amplia-se a margem destinada à remuneração do capital.
Assim, para nós, a explicação estaria na elevação, em níveis sem precedentes, da exploração do trabalho, seja por meio da mais-valia relativa, da mais-valia absoluta (extensão da jornada, múltiplas jornadas, intensificação do trabalho), seja da superexploração dos trabalhadores, além da exploração dos trabalhadores não assalariados. Sem dúvida que as políticas neoliberais do período constituíram o fator principal para que se lograsse a elevação da exploração do trabalho.
É bem verdade que essa elevação sem precedentes, embora indispensável para o sistema, não seria suficiente para explicar o crescimento da taxa de remuneração do capital a partir do início dos anos 80. Nosso entendimento é que, ao mesmo tempo em que se ampliou exageradamente a exploração do trabalho, expandiu-se o que denominamos lucros fictícios. Mas isso tem como conseqüência um grande problema que consiste em que, embora os lucros fictícios resolvam circunstancialmente a dificuldade, só o fazem ampliando a contradição principal (produção/apropriação), ao significar ulterior crescimento do capital especulativo.
Finalmente, nossa conclusão é de que, embora essa fase especulativa possa sobreviver por mais um tempo, ela tenderá a desaparecer. Só poderá sobreviver com adicional incremento da exploração do trabalho, o que não é trivial. Uma eventual substituição dessa fase especulativa por uma nova, reconstruindo-se a predominância do capital substantivo, pressuporá níveis insuspeitáveis de exploração. Assim, não há possibilidade de um retorno a um capitalismo menos violento do que aquele que sofremos hoje. O futuro do capitalismo só agravará a tragédia humana que se vive nos dias atuais no planeta. Sustentar o contrário é viver no mundo de ilusões.
Foi a partir dessa nossa visão sobre o capitalismo atual que tivemos a oportunidade de nos enfrentar às idéias de alguns autores que consideramos importantes nos dias de hoje. Eles apresentam a característica de explicitamente levar em consideração a teoria marxista do valor ou, pelo menos, de não negá-la nos seu textos.
Sobre duas das interpretações que analisamos, de Duménil e Lèvy e de Chesnais utilizaremos textos não muito atuais[4], embora acreditamos que suas posições não se alteraram substantivamente. Uma análise sobre seus trabalhos mais recentes fica adiada para novos esforços nossos. Sobre os outros dois, Virginia Fontes e Michel Husson, nossas considerações serão baseadas em textos recentes: no primeiro caso, artigo ainda a ser publicado, no segundo, publicado até agora exclusivamente em francês.
Duménil e Lévy
As principais idéias derivadas das relevantes pesquisas de Duménil e Lévy sobre o capitalismo, realizadas já há algum tempo, aparecem de certa maneira resumidas no artigo em que baseamos nossas considerações[5]. Esses autores sustentam que o período iniciado após a crise estrutural dos 70s e início dos 80s (que em outro lugar eles o denominam mais incisivamente "período neoliberal") caracteriza-se pela retomada da hegemonia da propriedade do capital sobre sua gestão. O período anterior, que entrara em crise e chamado por eles "compromisso keynesiano", durara apenas algumas décadas.
A atual fase do capitalismo, de retomada da hegemonia do que chamam "finança" (a financeirização), pressupôs modificação na forma da propriedade sobre o capital, com a sua transferência para grandes instituições financeiras, geridas por profissionais especialistas. Destacam os autores que o controle da produção, bem como as próprias decisões de alocação dos capitais, tende a ficar cada vez mais sob a responsabilidade de gestores profissionais. Assim, o período atual caracterizar-se-ia pela retomada, através do sistema financeiro, da hegemonia da propriedade, hegemonia essa que fora perdida durante o "compromisso keynesiano".
O trabalho empírico e a análise dos mencionados autores são de grande significação e indispensáveis para entender vários aspectos importantes da fase atual do capitalismo. No entanto, apesar de que explicitamente propõem-se realizar uma interpretação marxista, poucos dos conceitos dessa teoria são efetivamente utilizados por eles, exceto os mais genéricos de forças produtivas e relações de produção.
Na análise, quando a luta de classes é chamada a cumprir algum papel, restringe-se à contraposição entre proprietários e gestores do capital que, embora contradição com algum significado para um entendimento concreto da história do capitalismo desde o inicio do século XX, não pode, do ponto de vista marxista, ser considerada principal ou fundamental. Há, assim, uma sobrestimação dessa contradição e, por outro lado, o papel dos trabalhadores, em especial, dos produtivos, embora lembrada em algumas passagens do texto, recebe tratamento genérico e sem relevância para o essencial da interpretação.
Se a luta de classes aparece no texto de maneira pouco adequada, a teoria do valor, núcleo central da interpretação de Marx sobre o capitalismo, não é mencionada explicitamente. Seus conceitos de valor, mais-valia, mais-valia extra, exploração, transferência de valor não são mencionados nem mesmo uma vez. É verdade que o termo capital aparece de maneira recorrente, mas sem que se expresse o seu real conteúdo e menos ainda seu movimento dialético.
Essas considerações críticas sobre a manifesta orientação marxista da interpretação de Duménil e Lévy não podem reduzir a relevância da análise deles para nossa compreensão do capitalismo.
É verdade que o trabalho de Duménil e Lévy não contribui para eliminar as influências ecléticas, nem para dirimir dúvidas levantadas pela crítica burguesa e pequeno-burguesa à teoria de Marx. Mas esse jamais foi o propósito desse seu texto e, assim, eles não podem ser criticado por isso. Dentro dos objetivos que se propuseram, contribuem para o pensamento contemporâneo sobre o capitalismo; sua corajosa opção explícita pela perspectiva de Marx desafia os jovens, e todos os demais, a conhecerem mais profundamente a teoria marxista. E isso já é um grande mérito.
Enfim, quiçá a parte menos estimulante do texto, do ponto de vista marxista, seja a de suas conclusões. Talvez, para os autores, elas fossem inevitáveis dada a escolha preferencial, em sua análise, pela opositividade entre gestores e proprietários do capital. Apesar de considerarem a eventualidade de que as contraposições atuais do capitalismo possam chegar a ser resolvidas por uma grande crise econômica no centro do sistema, admitem também a possibilidade de que algumas das características "evolutivas" do sistema, surgidas a partir da hegemonia financeira e da política neoliberal, possam sobreviver a partir de uma extinção gradual dessa hegemonia e dessa política: uma espécie de retorno a um capitalismo que permitiria certas concessões aos trabalhadores; um regresso aos anos de ouro, uma volta a um capitalismo mais humano, se é que isso de fato em algum momento existiu.
Trata-se, na verdade, de uma visão muito otimista do futuro e, a nosso ver, irreal.
François Chesnais
O texto de Chesnais[6] retoma sua conhecida e consagrada tese de que o período capitalista atual caracteriza-se (de maneira similar, nesse aspecto, ao texto dos autores mencionados anteriormente) pelo domínio da "finança" sobre a "indústria" ou, em termos mais adequados para nós, do capital especulativo sobre o produtivo, resultante da política de desregulamentação e liberalização promovida pelos Estados Unidos e pela Inglaterra desde o final dos 70s e início dos 80s. Embora também destaque em sua análise a contradição que existe entre os gestores de fundos de investimentos, que configurariam o interesse próprio do capital especulativo, e os dirigentes das empresas produtivas (a gestão produtiva), não deixa de privilegiar os efeitos disso: a) sobre a forma de organização da produção, mais exigida no que se refere à rentabilidade (esta idéia também está presente em Duménil e Lévy), e b) sobre o conjunto dos trabalhadores, no que implica um aumento do nível da exploração. Assim, em sua interpretação, o conflito de classes, especialmente o fundamental, não fica ausente; ao contrário, é aspecto central.
O artigo mencionado de Chesnais avança ao esclarecer sua perspectiva sobre a "mundialização", aspecto que, segundo suas próprias palavras, não ficara claro em anteriores escritos seus. É aqui justamente que se configura um dos dois pontos mais altos do artigo: sua perspectiva é tributária de uma visão dialética de totalidade e, nela, embora intuitivamente, estão presentes os elementos fundamentais de uma adequada teoria do valor que lhe permite entender, com profundidade, o mundo capitalista atual. O outro ponto positivo está constituído por sua interpretação, como resultado de sua tese geral, das razões do crescimento experimentado pelos Estados Unidos durante a segunda metade dos anos 90s, das limitações desse crescimento e da impossibilidade de se imaginar o mesmo fenômeno para outros países. Mais uma vez a perspectiva da totalidade e a teoria do valor constituem os pilares que conferem relevância e garantem a adequação do pensamento de Chesnais.
Ponto fraco de seu texto, em nossa opinião, é seu apelo à teoria da regulação. O formalismo da terminologia regulacionista, longe de permitir um maior aprofundamento da sua tese, dificulta a compreensão dos seus leitores. É verdade que o autor não chega a afirmar claramente a relevância da concepção regulacionista, ficando a meio caminho quando declara que ela constituiria um sério e enriquecedor desafio ao "marxismo mumificado". Pareceria ficar sugerida, assim, a necessidade iniludível de apelar para esse tipo de teoria. Se, de fato, esse era o recado, parece-nos improcedente. Para superar as limitações do pensamento marxista contemporâneo é melhor, sem dúvida, uma volta substancial e adequada ao velho mestre: a Marx. Por outro lado, convém afirmar que Chesnais adquiriu prestígio internacional suficiente para não ter necessidade de adesão ao regulacionismo e para aparecer, na época contemporânea, com toda a originalidade que lhe é própria; além disso, o keynesianismo que transparece no seu pensamento não chega a prejudicar a profundidade da sua análise e se, por ventura abandonado, implicaria avanço ulterior.
Por outra parte, observa-se, até certo ponto, um tratamento insuficiente de certos conceitos fundamentais como capital, capital-dinheiro, capital fictício. Eles, embora usados com propriedade em muitos momentos, não chegam a ser explicitados claramente e, com isso, perde-se algo de seu poder explicativo. Talvez isso possa ser resultado da concisão do texto e a verdade é que não compromete de maneira importante a argumentação. Por outro lado, menos aceitável é a utilização de noções imprecisas (pelo menos se deixamos de lado o pensamento neoclássico) de produtividade do capital ou produtividade dos fatores. É verdade que não teríamos nada contra a utilização dessas imprecisas noções como simples indicadores empíricos de certos fenômenos, mas seria necessária uma explícita menção a isso e uma referência teórica, mesmo que breve, à sua limitação. Duménil e Lévy também não estão isentos do pecado da utilização delas, mas o fazem com mais cuidado.
Em resumo, em nossa opinião, despojado de sua terminologia regulacionista, o artigo de Chesnais representa um aporte altamente significativo, dentro de uma perspectiva marxista, para a compreensão do capitalismo atual, ao privilegiar a luta entre as classes fundamentais, ao submeter-se à perspectiva dialética da totalidade e ao incorporar como sustentáculo da interpretação, embora de forma mais intuitiva que consciente, elementos fundamentais de uma adequada teoria do valor.
Além disso, ultimamente Chesnais tem avançado ainda mais na utilização da teoria de Marx para sustentar sua interpretação e isso é o que mostra recente artigo de Rosa Marques e Paulo Nakatani[7]. Por outra parte, em novo trabalho, mais recente ainda, escrito por Chesnais[8] e não considerado nesse artigo mencionado, o autor chega até a utilizar-se do conceito, ao que parece, pela primeira vez, de lucros fictícios, embora sem toda a amplitude que damos a ele.
Nesse novo trabalho, apesar de que apresenta como preocupação especial o tema da produção de mais-valia, ou seja, de quem produz essa riqueza necessária para a remuneração do capital, consideramos que se comete um equivoco teórico. O autor afirma, ali, que é justamente nos países mais avançados, particularmente nos Estados Unidos, onde a taxa de mais-valia é a mais elevada, mas que, se pensamos na massa de mais-valia, na magnitude total dela de onde provem a maior parte da remuneração do capital mundial, a responsabilidade é especialmente da Ásia e da China. Vejamos como argumenta:
"Por suposto, seguem sendo os países capitalistas avançados (y sobretudo os Estados Unidos) os lugares onde a taxa de mais-valia ... é a mais elevada do mundo. A produtividade do trabalho é muito alta e o tempo de trabalho necessário muito baixo, e uma das razoes para isso é a importação maciça de ‘bens salários’ muito baratos. ... Mas se consideramos o quadro em termos de ‘massa’ e não de ‘taxa’, a maior parte da mais-valia que permite a reprodução do capital agora provém da Ásia e sobretudo da China. (idem - trad. nossa)"
Assim, para ele, a taxa de mais-valia mais elevada do mundo se encontra nos países capitalistas "mais avançados" e que uma das razões para isso é justamente a importação dos bens de consumo dos trabalhadores a preços muito reduzidos. Isso significa que os preços desses bens são inferiores aos correspondentes aos valores? Mas, então, o que acontece não é que a taxa de mais-valia naqueles países seja a mais elevada, mas que eles recebem massas de valor transferidas desde os países exportadores daqueles bens, que são especialmente os países "menos avançados".
Há, aí, sem dúvida, uma incompreensão da teoria marxista do valor, talvez explicável em parte pela perspectiva eurocêntrica do autor.
Comentário à interpretação de Virginia Fontes
O artigo de Virginia Fontes, denominado "Marx, expropriações e capital monetário - notas para o estudo do imperialismo tardio"[9], especialmente na sua última parte, é fundamental para se entender a atual fase do capitalismo, especialmente no que se refere à relação que existe entre o capital especulativo e o capital substantivo (capital funcionante em sua linguagem). Sua leitura permite também que se tenha presente alguns equívocos de interpretações contemporâneas que, ou não têm nenhuma relação com a teoria econômica de Marx ou, reinvindicando-a, não se dão conta do que é fundamental na teoria marxista do valor.
A autora tem uma particular preocupação: destaca que a ênfase que intérpretes contemporâneos do capitalismo colocam no predomínio da especulação leva a que se tenda a esquecer as relações sociais fundamentais que estão na base da organização capitalista. Tais relações se sustentam nas diversas formas da exploração do trabalho.
Assim, o artigo enfatiza a questão da expropriação e da expropriação da mais-valia como base para a existência do capitalismo, em qualquer momento de sua existência. Insiste em um aspecto que é fundamental: a mais-valia, extraída da exploração direta do trabalho é a fonte originária de qualquer remuneração do capital (incluindo os juros ou as rendas especulativas). Nós poderíamos agregar aqui, a maneira de complementação, que é dessa exploração, e por tanto da mais-valia (adicionando-se o excedente mercantil não salarial) que deriva também a remuneração e, adicionalmente, os gastos do trabalho improdutivo, das atividades improdutivas, sejam elas realizadas pelo setor privado ou pelo setor público.
É verdade que a referida autora não leva em consideração nosso conceito de lucros fictícios e, sobretudo, portanto, não considera suas implicações para as perspectivas futuras do capitalismo. Talvez por isso seu artigo não chegue a discutir essa questão que é absolutamente relevante do ponto de vista teórico e, principalmente, do ponto de vista político. No entanto, criticar o mencionado artigo por desconhecer o referido conceito seria um despropósito, tendo em vista que a generalidade dos autores que estudam o assunto ou não o conhecem ou estão em desacordo com ele (com uma ou outra exceção[10]).
No artigo de Virginia Fontes, capital a juros é chamado de capital monetário. Isso pode levar a certa dificuldade, pois por capital monetário pode se entender tanto o capital a juros quanto o capital fictício. Mais do que isso: o capital monetário pode referir-se, também, em um nível mais elevado de abstração, à simples forma funcional do capital industrial (na terminologia de Marx), forma essa que é o ponto de partida do ciclo do capital dinheiro (vejam-se os primeiros capítulos do livro II d'O Capital). Essa última confusão, entre o capital dinheiro como forma funcional e o capital a juros como forma substantivada, não é muito problemática para uma eventual análise concreta, pois os conceitos se situam em diferentes níveis de abstração. No entanto, a dificuldade maior está na possibilidade de identificação e de confusão entre o que de fato é capital a juros e capital fictício.
A distinção entre esses dois conceitos, especialmente se considerarmos as duas modalidades do capital fictício (I e II), é algo fundamental, a nosso ver, para se entender a lógica do funcionamento da fase atual do capitalismo. E é justamente a partir daí que surge uma questão que nos parece importante lógica e historicamente: uma coisa é a existência do capital a juros emprestado a uma empresa, seja ela produtiva ou comercial; outra é o capital fictício controlando o capital substantivo, determinando o comportamento gerencial dos gestores do capital em ação. No primeiro caso, o capital a juros é aspecto dominado do capital industrial, sendo parte dele; no segundo, opõem-se ao capital industrial, aquele como pólo dominante. Essas situações constituem, inclusive, etapas diferentes do capitalismo e a transição entre elas necessita explicação histórica e teórica.
Na verdade, a interpretação de Virgínia Fontes, embora tendo como referencial substantivo uma adequada perspectiva sobre a teoria marxista do valor, apresenta um ponto de vista diferente do que utilizamos para entender a etapa atual do capitalismo. No entanto, consideramos que, muito mais que perspectivas alternativas, trata-se de enfoques complementares. E isso, por uma razão muito simples: por ter como base a mesma teoria do valor.
Se estamos frente a enfoques complementares e não alternativos, em que sentido a perspectiva da autora avança e contribui para nossa compreensão da sociedade atual, dentro mesmo da visão que temos sobre o assunto?
Em primeiro lugar, a leitura do trabalho permite entender que o predomínio do capital "monetário" em escala mundial exacerba a centralização do capital, mas ao mesmo tempo impulsa a extensão do espaço das relações capitalistas e, por tanto, da extração da mais-valia. Concentra e centraliza, mas ao mesmo tempo permite uma ampla dispersão do capital que diretamente extrai mais-valia e se responsabiliza pela exploração. Ela afirma que o mencionado predomínio "estimula simultaneamente a concentração e a dispersão do capital funcionante." (VF)[11]
O controle que é exercido mundialmente pelo "capital monetário" permite e estimula a existência de uma multiplicidade de formas de exploração do trabalho, tarefa deixada nas mãos do capital substantivo de tamanhos variados. O capital especulativo controla o funcionamento e a lógica da economia mundial, apropria-se vorazmente do fruto da exploração, mas não suja as mãos com ela:
"Inúmeras atividades, aparentemente distantes dos grandes monopólios e dispersas numa miríade de "empreendedorismos", ligam-se ao capital monetário sob vínculos diversificados de financiamento. Nesse âmbito, a atividade extratora de mais-valia é instada a se realizar a partir de empreendimentos de portes variados. Sua extrema diversificação atravessa toda a malha social, renovando expropriações, aprofundando a divisão vertical do trabalho e impondo novas formas de subordinação do trabalho ao capital. A isso poderíamos denominar de difusão de relações sociais capitalistas em todos os níveis da vida social, impondo formas de extração de mais-valor muitas vezes sob condições extremas a trabalhadores tendencialmente desprovidos de direitos. Ao mesmo tempo, a grande propriedade se condensa, através da intensificação de fusões e aquisições empresariais, concentrando-se em alguns proprietários monopólicos internacionais gigantescas massas de capitais". (VF)
Isso permite que a exploração dos trabalhadores alcance elevado grau, em particular pela mais-valia absoluta, seja pela extensão da jornada muitas vezes alcançada pela imposição de mais de um emprego ao trabalhador, seja pela intensificação do trabalho (que também significa elevação da mais-valia absoluta). Permite também o surgimento ou ressurgimento de formas de exploração extremas, aparentemente não capitalistas ou mesmo não salariais, próprias de formas intermediárias de subsunção e distantes das formas real e formal. E aqui temos de recordar do conceito de superexploração desenvolvido pelo mestre Ruy Mauro Marini.
"... a autonomização do capital monetário no plano internacional permite aprofundar sua atuação como impulsionador de atividades funcionantes, impondo a extração de sobretrabalho (mais-valor) sob diversificadas formas jurídicas para o assalariamento." (VF)
E aqui nós acrescentaríamos que essa extração de sobretrabalho, ao alcançar também formas não salariais ou aparentemente não salariais, resulta não propriamente em mais-valia, mas um excedente mercantil, um excedente-valor, apropriável pelo capital sob a forma de lucro, lucro comercial, juros, renda da terra ou qualquer outra das formas de apropriação do excedente.
As tarefas de extrair diretamente a mais-valia ou o excedente mercantil ficam sob responsabilidade não só de empresas capitalistas grandes ou médias, mas também de pequenos empreendimentos, muitas vezes com características aparentemente não capitalistas.
A função de realizar diretamente a exploração:
"... espraia-se sobre um amálgama de pequenos empreendimentos (porém ativamente funcionantes), disseminando-os como vasos comunicantes. A atuação do capital-mercadoria se estende para o conjunto das atividades de subsistência na vida social. Transforma assim igualmente grandes e pequenos empreendedores em 'capital funcionante', em extratores de mais-valia." (VF)
O artigo de Virginia Fontes permite entender que a relação entre as mencionadas formas de capital está muito longe de constituir uma contradição fundamental e muito menos antagônica entre a propriedade e a gestão do capital; entre o capital em ação e os rentistas. A contradição fundamental continua sendo entre capital e trabalho. Os agentes do capital, seus gestores, proprietários ou não de parcelas maiores do capital substantivo, também se beneficiam da especulação e são beneficiários do rentismo e da especulação.
"...mas a contradição entre os diferentes tipos de capital vem sendo até aqui diluída através da incorporação seletiva de grandes e médios funcionantes à propriedade genérica do capital monetário, ainda que de forma subalterna." (VF)
O fato é que até mesmo pequenos produtores e também assalariados médios chegam a se beneficiar de maneira mais marginal, pelo menos nas conjunturas favoráveis, das rendas especulativas.
Virginia Fontes contribui também em outro aspecto: ao esclarecer que o domínio a escala mundial do capital especulativo cria ou reafirma aspectos significativos da aparência do sistema:
"O predomínio atual do capital monetário em escala internacional se acompanha, pois, da generalização de dois mitos, ambos resultantes de sua percepção unilateral: o de que é na atividade da gestão intelectual (sobretudo na complexa gerência de riscos e de taxas, na gestão internacionalizada de capital monetário), que se produz o lucro e o segundo mito, seu complemento, o de que o trabalho vivo não mais teria qualquer função na vida social." (VF)
"De fato, para os megaproprietários do capital monetário e para seus agentes, o trabalho deixou de cumprir o papel central, uma vez que dele estão distanciados física e intelectualmente." (VF)
O trabalho aparece agora como fator que não constitui a fonte originária do excedente e essa função passa a ser transferida para o conhecimento, para a tecnologia. O trabalho manual aparece como algo em extinção e já como sem maior importância para a produção da riqueza. O lucro aparece como resultado da capacidade de gestão intelectual. Essa aparência ganha contornos de realidade absoluta e indiscutível. A informação passa a ser o novo fetiche da sociedade capitalista atual, ao lado de todos os demais, especialmente ao lado da "santíssima trindade": os fetiches mercadoria, dinheiro e capital (sendo este último o Pai de todos).
"O relativo distanciamento produzido pela autonomização do capital monetário frente à multiplicidade exponencial de atividades concretas de trabalho que fomenta e das quais se nutre aparece como total descolamento entre a riqueza e o trabalho, como o fim do trabalho. ... Uma extrema valorização do trabalho intelectual (ou cognitivo) se dissemina, obscurecendo os processos reais ..." (VF)
"Trabalho cognitivo"! Bela expressão carregada de conteúdo ideológico, expressão de preconceito e incompreensão sobre o papel do trabalho manual. "Capitalismo informacional"! What?! Os trabalhadores manuais já não são mais necessários no mundo capitalista atual ou, pelo menos, quase já não são necessários. Eis o que Virginia Fontes desmistifica, ao mostrar claramente a origem da força dessa aparência.
O capital encontrou o seu paraíso. Já não é necessário sujar as mãos de carvão como no século XIX, ou sentir o cheiro da gasolina ou do diesel como no século passado. O capital consegue produzir lucro distante da produção, distante do suor, do cheiro e das mãos calejadas do operário industrial ou do trabalhador do campo.
"O capital monetário se apresenta socialmente como um capital acima dos demais, que não "suja" as mãos no processo produtivo, tarefa que impõe aos agentes funcionantes, quer estes sejam ou não proprietários diretos dos meios de produção, é bom lembrar." (VF)
"A ‘limpeza’ deriva do fato de que, ao distanciar-se da produção direta, não se envolve imediatamente com as formas brutais de extração de valor que intensifica." (VF)
Virginia privilegia sim, na sua análise, a contradição entre propriedade e gestão do capital, e subestima, embora a tenha presente, a que existe entre a produção e a apropriação de mais-valia e excedente mercantil. No entanto, evita as armadilhas do reformismo presente em outras interpretações que privilegiam tal contradição, embora não apresente conclusões, pelo menos explicitamente e justificadas pelo seu enfoque, sobre as potencialidades do futuro do capitalismo. Mesmo que a contradição que aparece na sua interpretação seja a que existe entre propriedade e gestão, ela tem claro que a contradição fundamental no capitalismo atual continua sendo a que existe entre capital e trabalho e essa sua idéia deriva da fortaleza da sua convicção na teoria marxista do valor e, principalmente, em uma interpretação adequada dela.
A interpretação de Michel Husson
Em artigo recente denominado "Finance, hyper-concurrencie et reproduction du capital[12], cuja publicação em português não tardará, Michel Husson discute o papel do processo de financeirização da economia capitalista atual e em sua interpretação apresenta um gráfico muito interessante. Ele constata que a partir do início dos anos 80, dentro do domínio neoliberal, nos principais países da OCDE, o crescimento da taxa de lucro, ou melhor, a retomada de níveis elevados dessa taxa, não é acompanhada na mesma medida do ritmo de acumulação do capital. A distancia entre eles é particularmente significativa. Seu gráfico mostra também que o total de salários baixa em relação aos rendimentos financeiros, enquanto que, em média, o investimento mantém sua proporção mais ou menos constante na renda nacional.
"Se abstraímos as flutuações cíclicas, a nova fase se caracteriza portanto da seguinte maneira: recuperação da taxa de lucro sem efeito sobre a acumulação, crescimento medíocre e débil evolução da produtividade." (MH, p. 3)
E conclui:
"É legítimo chamar financeirização essa distância entre lucro e acumulação, uma vez que o lucro não acumulado corresponde principalmente à distribuição de rendas financeiras. Mas é muito mais discutível partir dessa constatação para propor uma periodização do capitalismo que só se sustente no modo de financiamento da acumulação". (MH, p.3)
Aparentemente, nessa passagem, haveria uma crítica a idéia de privilegiar na análise a contradição propriedade/gestão do capital, pelo menos como critério de periodização do capitalismo. No entanto, sua interpretação do processo que ele chama de financeirização é muito diferente da nossa perspectiva.
Ele está nesse artigo particularmente preocupado em destacar o fato, com o qual concordamos inteiramente, de que o valor só pode ser criado na produção e não pelo setor financeiro, especulativo. Referindo-se a uma das interpretações existentes nos dias de hoje sobre o capitalismo ele afirma:
"A euforia bursátil e as ilusões criadas pela nova economia têm dado a impressão de que se pode enriquecer dormindo, uma vez que a finança tornou-se uma fonte autônoma de valor. A tese da "escolha de portfolio" postula que os capitais estão permanentemente escolhendo entre investir na esfera produtiva ou de se situar nos mercados financeiros especulativos e que eles decidem entre os dois em função dos rendimentos relativos esperados. Esse enfoque pode ter a virtude de ser crítico, mas ele tem o defeito de sugerir que existem dois meios alternativos de criar valor. Na realidade, só se pode enriquecer na Bolsa sobre a base de uma apropriação operada sobre a mais-valia, de tal sorte que o mecanismo apresenta limites - os da exploração - e que o movimento de valorização bursátil não pode se auto-alimentar indefinidamente". (MH, p 5)
Husson tem toda razão, pois só existe uma forma de criar valor: na produção e, ainda mais, por meio do trabalho produtivo[13]. No entanto, o autor não reconhece o conceito de lucros fictícios e, assim, não podemos concordar com sua idéia de que não se pode enriquecer na bolsa sob outras bases que não seja a da apropriação da mais-valia.
A aparência das operações das bolsas de valores não deixa dúvidas. Pode-se, sim, enriquecer sobre bases especulativas, sem que por detrás exista mais-valia; por puro movimento especulativo do preço dos ativos. Se o preço do conjunto das ações se eleva, todos se sentem mais ricos do que antes. Além disso, também alguns podem se enriquecer por apropriação de capital fictício de propriedade de terceiros. É o que acontece quando, por movimentos especulativos, perdem pequenos aplicadores pouco informados e ganham os grandes especuladores, os verdadeiros capitalistas financeiros. Essa uma ocorrência muito freqüente.
Claro que alguns poderiam objetar que se trata de pura aparência de enriquecimento. E isso é indiscutível. No entanto, quem é que pode afirmar que a aparência não é uma das dimensões da realidade e que se trata, portanto, de pura ilusão? Na verdade, a aparência é real e a apropriação especulativa também o é, embora alguma precisão teremos de fazer sobre isso.
Husson tem razão quando afirma que o mecanismo de enriquecimento dos especuladores apresenta limites, mas esse limite não está reduzido à grandeza da mais-valia. Não fosse assim, o volume de capital especulativo que circula pelo mercado mundial não poderia ter chegado a alcançar magnitude tão elevada como nos dias de hoje. Esse limite é muito mais flexível e se encontra na disposição do mercado em aceitar o crescimento do capital pela via da expansão do capital fictício, isto é, pela aceitação (apropriação) do lucro fictício. Obviamente que isso não significa pensar que a solução por esse tipo de lucro (que, ao mesmo tempo e dialeticamente é ilusório e é real) não apresenta limites e nem problemas. Ao contrário, a remuneração do capital por meio do lucro fictício só é complementar, exige ao mesmo tempo graus adicionais de exploração do trabalho. Por outra parte e além disso, o verdadeiro problema se configura pelo fato de que tal solução implica automaticamente crescimento ulterior do capital fictício (no caso, especulativo parasitário), o que agrava a contradição produção/apropriação. Nisso se configura um crescente problema e uma dificuldade do sistema.
Admitir a existência de remuneração do capital por meio dos lucros fictícios, desligados da produção da mais-valia, não significa tampouco, de nossa parte, abandonar a teoria marxista do valor, teoria essa, com razão, reivindicada fortemente por Husson. Ao contrário, tal teoria se encontra solidamente configurada como base para a compreensão de que a contradição principal da atual etapa do capitalismo está constituída pela oposição entre produção e apropriação de riqueza mercantil (em particular, mas não exclusivamente, de mais-valia). Em nossa compreensão, utilizar a teoria de Marx para entender a atual etapa capitalista implica necessariamente colocar essa contradição no centro da análise. Em outras oportunidades, e já há muito tempo, tivemos oportunidade de afirmar que as perguntas fundamentais da teoria marxista do valor são: quem produz, quem se apropria e como se transfere o valor. Seus conceitos fundamentais são, portanto: produção, apropriação e transferência de valor.
O desconhecimento do conceito de lucros fictícios por parte de Husson fica claro na seguinte passagem do mesmo artigo:
"A menos que se agarre à ficção dos ganhos virtuais, o crescimento da esfera financeira - e dos rendimentos reais que ela pode proporcionar - só é possível na proporção do aumento da mais-valia não acumulada, e tanto uma como a outra admitem limites, que foram alcançados". (MH, p. 6)
Tendo em vista a interpretação que Husson tem da "financeirização", que implicações ou que efeitos sobre o capitalismo atual tem, para ele, a expansão do capital especulativo?
Em primeiro lugar o mencionado autor destaca que a expansão da atividade financeira ampliou os espaços de acumulação do capital, criando um mercado verdadeiramente mundial, dando certa razão a expressões como globalização ou mundialização. Ao mesmo tempo, facilitou o processo de igualação das taxas de lucros. Em duas pequenas passagens do seu texto isso fica muito claro:
"A função principal da finança é abolir, enquanto seja possível, os limites dos espaços de valorização: ela contribui no sentido da constituição de um mercado mundial." (MH, p. 9)
"De maneira mais geral, a financeirização tem por efeito a superação dos limites setoriais e geográficos da igualação das taxas de lucro. ... A financeirização é o que permite a mobilidade dos capitais." (MH, p. 9)
Assim, Husson vê na financeirização o mecanismo de fortalecimento do movimento do capital e da concorrência e é por isso que esse processo, ao contrário de constituir-se em uma dificuldade adicional para o futuro do capitalismo, parece resultar-lhe favorável.
"A finança é o meio de fortalecer a concorrência favorecendo as movimentações do capital: essa é a função principal que ela exerce. ...
A característica principal do capitalismo contemporâneo não reside assim na oposição entre um capital financeiro e um capital industrial, mas na ativação da concorrência (hyper-concorrência) entre capitais permitida pela financeirização." (MH, p. 9)
Curiosamente, em sua análise, embora a reivindicação da teoria marxista do valor seja uma constante, nenhuma referência à lei da tendência decrescente da taxa de lucro esteja presente e muito menos cumpra algum papel na interpretação sobre o capitalismo atual.
Ele complementa sua análise quando considera que todo esse processo generaliza a concorrência entre os trabalhadores do mundo inteiro, sugerindo isso como mecanismo capaz de ter produzido e seguir produzindo uma elevação da taxa de exploração em todo o planeta, aspecto com o qual concordamos inteiramente:
"A mundialização capitalista consiste fundamentalmente na generalização da concorrência entre os trabalhadores em escala planetária, através do movimento de capitais. Dizer que o espaço de valorização se estende ao conjunto da economia mundial implica que as normas de exploração tendem também a se universalizar... Tal resultado parece evidente: a busca de uma taxa de lucro máxima implica a de uma taxa de exploração a mais elevada possível." (MH, p. 9)
No que se refere ao efeito da financeirização sobre a exploração do trabalho há uma proximidade entre a perspectiva de Husson e a de Virginia Fontes.
Assim, a conclusão de Husson é de que a financeirização cumpriu e cumpre um papel positivo para o funcionamento do capital.
"A finança não é um obstáculo ao funcionamento normal do capital, mas o instrumento de seu retorno a um funcionamento puro, libertado de toda uma série de regras e pressões que eram impostas a tal sistema durante decênios." (MH, p. 1)
"A finança não é um obstáculo ao funcionamento atual do capitalismo, mas um dos seus mecanismos essenciais. ... Desse ponto de vista, o capitalismo contemporâneo não se distancia do modo de operação analisado por Marx ...Não se pode considerar que ele estaria pervertido pela finança, uma vez que ela é precisamente um dos principais mecanismos que permitem que o capitalismo se identifique cada vez mais com o seu próprio conceito." (MH, p. 13)
Mas, a sua interpretação do papel positivo da financeirização não acaba por aí. Dá a impressão, em certos momentos, de que o autor cai em uma interpretação subconsumista ingênua, embora isso não seja totalmente claro e explicito em seu texto. Veja-se essa passagem, por exemplo:
"O fenômeno remete basicamente a uma contradição essencial ... que consiste em que o capital se recusa a satisfazer uma parte crescente das necessidades sociais, pois isso evolui de uma maneira que se afasta cada vez mais dos seus critérios de escolha e eficácia. A financeirização é, assim, uma manifestação associada a essa configuração, cuja base objetiva reside na existência de uma massa crescente de mais-valia que não encontra oportunidade de ser acumulada de maneira ‘produtiva’ e gera, portanto, a financeirização como meio de dirigir tais massas de valor em direção ao consumo dos rentistas." (MH, p. 17)
A remuneração especulativa do capital tem a função de favorecer a realização da mais-valia por meio do consumo suntuário dos rentistas? Essa é a idéia? Não podemos concordar com isso.
Na verdade, a ausência do conceito de lucro fictício e a constatação da defasagem entre a massa de lucro do capital e o volume de acumulação levam o autor a um equívoco, a acreditar que os rendimentos do capital especulativo, se não se destinam à acumulação produtiva, devem necessariamente ser destinados ao consumo. O que falta que se entenda nessa interpretação é o fato de que, por trás desse lucro especulativo, não existe absolutamente nada de mais-valia, nada de excedente real que deva ser o consumido o acumulado de alguma maneira, seja pelo capital produtivo, seja pelo capital de comércio. Esses lucros fictícios, e isso que não é fácil entender, só podem ter como destino a elevação da magnitude do capital fictício, do capital especulativo parasitário. A dificuldade provém do fato de que na aparência cada possuidor de capital fictício ou recebedor de lucro fictício pode converter sua propriedade em um capital de outro tipo. Essa aparência faz com que se gere a ilusão de que se trata de uma remuneração que ou é acumulada substantivamente ou deve ser consumida.
O equívoco de Husson parece reforçar-se nesta passagem:
"... seria necessário explicar por que os beneficiários de rendimentos financeiros não os dirigiriam para a acumulação, e decidiriam ao contrário consumi-los.
Ou, a menos que se considere que a esfera financeira constitui um tipo de terceira seção[14], ao lado das de meios de produção e de bens de consumo, as somas lançadas pelos rentistas são reintroduzidas no circuito e só podem completar o ciclo do capital de duas maneiras: consumo ou acumulação. ... Basta, contudo, mostrar um resultado importante: os rendimentos financeiros (juros e dividendos) não possuem outro destino final que o consumo ou a poupança. ... Esse resultado elementar é importante a ser lembrado, pois significa que não existe, ao lado da acumulação e do consumo, uma terceira utilização final dos rendimentos que se gostaria de chamar, por exemplo, especulação financeira." (MH, p. 15)
Complementa seu raciocínio mostrando que o mecanismo para o consumo necessário da mais-valia são justamente os rendimentos especulativos:
"...para que os capitalistas possam consumir da mais-valia, é necessário que ela lhes seja distribuída. Ora, essa distribuição se faz (a exceção do consumo dos pequenos capitalistas individuais) sob a forma de rendimentos financeiros. Há portanto um vínculo direto entre a distribuição de rendimentos financeiros e o consumo da mais-valia." (MH, p.15)
Apesar das limitações da interpretação de Husson e das discordâncias que temos como ela, uma de suas conclusões é por demais satisfatória:
"Recupera-se então a idéia de que não é possível dissociar os fenômenos da exploração e da financeirizacao que aparecem como dois componentes de uma mesma realidade. O capitalismo contemporâneo é antes de tudo um capitalismo superexplorador: o aumento da taxa de exploração permite a recuperação da taxa de lucro sem engendrar novos espaços de acumulação na mesma proporção. O consumo da mais-valia permite, então, reduzir essa distancia. Nesse esquema de conjunto, a financeirizacao cumpre uma dupla função: ela instaura uma concorrência exacerbada, necessária para manter a pressão à alta da exploração; ... A história concreta nos oferece algumas indicações sobre a ordem dos fatores: a virada neoliberal é, em primeiro lugar, uma derrota infringida pelo capital ao trabalho, na qual a finança tem sido uma alavanca mais que um fator autônomo. "O desenvolvimento ulterior da finança tem sido adicionalmente um meio de reforçar essa nova relação de forças pela intensificação da concorrência, e de satisfazer - pelo menos provisoriamente - as exigências da reprodução." (MH, pp. 16 e 17)
Assim, e em conclusão, os dois últimos enfoques, o de Virginia Fontes e o de Husson, têm o grande mérito de terem como sólida base e de maneira coerente a teoria marxista do valor; são enfoques significativos e relevantes em mais de um aspecto. Pecam pelo fato de que não levam em consideração a existência real dos lucros fictícios e as implicações que derivam desse conceito. O último artigo comentado peca, além do mais, por apresentar uma interpretação baseada em uma perspectiva subconsumista.
Artículo enviado por el autor para su difusión en Herramienta hacia fines de octubre de 2008.
[1] Aliás, o pensamento marginalista tem até um nome para essa propriedade milagrosa: produtividade marginal do capital.
[2] Opinião diferente apresenta, por exemplo, o economista marxista Orlando Caputo. El capital productivo y el capital financiero en la economía mundial y en América Latina. In: ¿Hacia Dónde va el Sistema Mundial? Impactos y alternativas para AL y El Caribe. Gambina, Julio y Estay, Jaime. FISyP, Buenos Aires, 2007.
[3] Entendemos por capital substantivo o conjunto formado pelo capital produtivo e pelo comercial.
[4] Ambos publicados em Uma nova fase do capitalismo? François Chesnais, Gérad Duménil, Dominique Lévy e Immanuel Wallerstein. São Paulo e Campinas, Editora Xamã e Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp, 119 páginas. No entanto, nos sentimos obrigados a fazer breve uma referencia a um texto recente de Chesnais.
[5] Duményl y Lèvy. "Superação da crise, ameaça de crises e novo capitalismo" (publicado no livro mencionado, ver nota de rodapé nº4)
[6] Chesnais, F. "A nova economia: uma conjuntura própria à potência econômica estadunidense" (publicado no livro mencionado, ver nota de rodapé nº4)
[7] Marques, Rosa Maria e Nakatani, Paulo. "O papel da finança no capitalismo contemporâneo", Anais do XIII Encontro Nacional de Economia Política. SEP, São Paulo, junho de 2007. Cf. também Chesnais, F. "La prééminence de la finance au sein du ‘capital en general’, le capital fictice y le mouvement conteporaine de mondialization du capita"l. In: Bunhoff, S. et all. La Finance Capitaliste. Paris, Presse Universitaires de France, 2006.
[8] Chesnais, François. "El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera" (artigo publicado em Herramienta Nº 37, Buenos Aires, março 2008). Neste trabalho e no citado na nota de rodapé anterior, não aparece utilização de terminologia regulacionista.
[9] Artigo a ser publicado pela revista Crítica Marxista.
[10] Uma exceção é F. Chesnais que, em artigo recente, como já mencionamos, aceita o conceito em um sentido muito restringido.
[11] Uma vez que o artigo ainda está inédito, nos limitaremos a citá-lo dessa maneira.
[12] Disponível em http://hussonet.free.fr/finamarx.pdf. Acesso em: 14 de fevereiro de 2008 (neste texto será citado como MH, p.... - trad. nossa). Também publicado como capítulo do livro La finance capitaliste, Séminaire d’Études Marxistes (Suzanne de Brunhoff, François Chesnais, Gerard Duménil, Michel Husson et Dominique Lévy), Presses Universitaires de France, 2006.
[13] É verdade que qualquer proprietário de um capital pode escolher entre um investimento produtivo ou uma aplicação financeira. Mas isso só é verdade quando se refere a um capital isolado, ou melhor, a cada capital isoladamente. Se o assunto se translada ao nível global, a coisa muda de figura.
[14] Husson com certeza está se referindo aqui aos esquemas de produção de Marx, do livro II de O Capital.