24/04/2024

Identidades Entre Violência e Capital

Por

Identidades Entre Violência e Capital
Ivan Cotrim (Centro Universitário Fundação Santo André e
Universidade Presbiteriana Mackenzie)
ivancotrim@uol.com.br
Resumo
Buscamos apresentar neste texto a trajetória do fenômeno social que funde nos indivíduos a exploração econômica para acumulação de capital e a violência necessária à consecução desta última. No primeiro plano tratamos das abordagens de Marx no momento inicial de sua crítica à economia política em que faz aflorar pela análise o núcleo da violência econômica (separação real entre força de trabalho e propriedade privada), e pela consequente obliteração realidade pela alienação e o estranhamento que permeiam todas as categorias, todas as relações econômicas do capital. Essa desefetivação dos indivíduos em suas atividades reflete as condições a que foram submetidos no processo de instalação do capitalismo. Em seguida apresentamos alguns aspectos da acumulação primitiva do capital exposta em O Capital de Marx, para indicar a historicidade daquela violência originária. Por fim, com a inclusão das crises periódicas do capital tratamos da violência no século XX. Consideramos as duas guerras como polos de violência econômica, o stalinismo como uma vertente não capitalista de ação econômica acentuadamente violenta, e em todo esse percurso a presença, na base da organização do capital, da alienação e do estranhamento como violência por obliteração.
Palavras Chave: Capital, Propriedade Privada, Alienação, Estranhamento e violência.
Parte I
Destacado nos Cadernos de Paris, primeira abordagem crítica de Marx à economia política, encontramos o que ele entende por comunidade humana: forma social que pressupõe relações definidas por indivíduos conscientes, associados, emancipados de qualquer mediação, política, institucional, sobrepostas a eles em suas relações metabólicas, despojadas da alienação e do estranhamento. Centrando-se na comunidade humana observa Marx que: “O intercâmbio, tanto da atividade humana no próprio processo de produção como dos produtos humanos entre si = a atividade genérica e ao desfrute genérico, cuja existência real, consciente e verdadeira é a atividade social e o desfrute social” (Marx, 1974: 136-7).
Ao contrário desta, a sociedade mercantil, forma social própria da economia política, do capitalismo, das trocas, da propriedade privada, da divisão, do trabalho, do assalariamento, etc., não foi tratada por Marx como comunidade humana, pois nela vicejam essas relações determinantes da alienação e do estranhamento, trata-se então de uma caricatura da comunidade real; e na confirmação de sua posição, Marx indica que: “é exatamente igual dizer que o homem se estranha de si mesmo e dizer que a sociedade deste homem estranhado é a caricatura de sua comunidade real, de sua verdadeira vida genérica” (Marx, 1974: 137). A alienação dos indivíduos coincide com uma comunidade igualmente alienada, que é uma caricatura da comunidade verdadeira, e lega aos indivíduos o estranhamento em geral, uma violência que permeia todas as categorias econômicas, todas as relações contidas sob a forma social do capital.
Essa negatividade histórica corresponde à deformidade subjetiva dos indivíduos, oriunda de seu sofrimento real no âmbito de sua vida real, como diz Marx: “sua atividade se lhe apresenta como um tormento, sua própria criação como um poder estranho, sua riqueza como pobreza; /.../ o vínculo essencial que o une aos outros homens se lhe apresenta como um vínculo inessencial, e melhor, a separação com respeito aos outros homens como sua existência verdadeira; /.../ sua vida se apresenta como sacrifício de sua vida, a realização de sua essência como desrealização de sua vida, sua produção como produção de seu nada, seu poder sobre o objeto como poder do objeto sobre ele; /.../ ele, amo e senhor de sua criação, aparece como escravo desta criação” (Marx, 1974: 138).
Noutro lugar, Marx observa, de passagem, que o humano está fora da economia política, pois, onde ela domina, rege o inumano, rege o dinheiro, uma criação humana que como mediador assume toda tessitura relacional dos indivíduos, e à qual eles se submetem reproduzindo nesse ato sua alienação e estranhamento. Ato que se define por uma recusa dos indivíduos em ocupar o seu lugar ativo, consciente, metabólico no centro da sociedade, recusa reveladora de suas condições desumanizadas como conseqüência da violência por obliteração, pelo estranhamento e pela alienação que os domina.
As mediações postas pelo capital impregnam as relações sociais convertendo-as, sem cessar, em atividade pró-capital; o capital nutre-se dos indivíduos e os expele. Estes, violentados e desumanizados subsistem esvaecidos e inefetivos. A comunidade mercantil, o capitalismo, perpetua as relações necessárias à sua continuidade, relações de estranhamento e alienação pelo fluxo das mediações, da propriedade privada, do dinheiro, do capital. 
De forma sintética, Marx apresenta a propriedade privada como tráfico sórdido, e, como sua complementação, definida no interior das atividades humanas, a divisão do trabalho, nos seguintes termos: “Assim como o intercâmbio mútuo dos produtos da atividade humana aparece como comércio de troca, como tráfico sórdido, assim também a complementação e o intercâmbio mútuos da própria atividade aparecem como: divisão do trabalho” (Marx, 1974: 145).
Nesse sentido, a divisão do trabalho, tanto, quanto a propriedade privada obcecam os indivíduos e turvando os caminhos de suas livres e conscientes associações, recrudescendo as mediações negativas que dissimulam a unidade de sua atividade vital. Resulta de tal condição a conseqüência de que os homens despontam como seres abstratos, como máquinas, como “aborto espiritual e físico”, facultando a perpetuação da sociabilidade mercantil, do capital, do capitalismo. As mediações necessárias a essa perpetuação encontram na economia política seu potencial de reprodução e de afirmação, e por força dessa inumanidade do capital, objetiva-se cotidianamente uma forma oposta à essencial unidade do trabalho humano.
Diante dessas condições sociais em que dominam a propriedade privada, a divisão do trabalho, e as trocas, emerge o egoísmo moderno. Marx demonstra em sua crítica originária à economia política como essa relação social se põe no processo de produção: “Eu produzo para mim e não para ti, assim como produzes para ti e não para mim. O resultado de minha produção tem em si e para si tão pouca relação contigo como o resultado de tua produção tem imediatamente comigo” (Marx, 1974: 149-150), e desdobra em seguida afirmando que “nossa produção não é uma produção do homem para o homem enquanto homem: não é uma produção social” (Marx, 1974: 150).  E avançando em sua argumentação ele diz: “Nenhum dos dois mantém, enquanto homens, uma relação de gozo com o produto do outro. Não existimos na qualidade de homens para nossas produções recíprocas” (Marx, 1974: 150). Só a troca, como movimento mediador no seio da sociabilidade humana, irá “confirmar o caráter que tem cada um de nós com respeito a seu próprio produto e à produção do outro”, pois, em verdade, cada um de nós vê “em seu produto seu próprio egoísmo objetivado, e, no produto do outro, um egoísmo diferente, estranho, objetivado com independência deste” (Marx, 1974: 150).
Emulados pelo intercâmbio mercantil, os indivíduos, estranhados recolhem-se aos seus interesses mesquinhos renunciando às atividades propriamente humanas, renúncia essa que permite efetivar a mediação, o intercâmbio mercantil, a troca. Marx observa então que nestas condições sociais “nosso intercâmbio não pode ser o movimento mediador em que se confirmaria que meu produto é para ti pelo fato de ser uma objetivação de tua própria essência, de tua necessidade. Não o pode ser porque o vínculo de nossas produções recíprocas não é a essência humana” (Marx, 1974: 150), ou seja, não são os indivíduos os mediadores para os próprios indivíduos, pois o mediador é a efetivação real, porém, abstrata, de seu metabolismo, o referencial imediato de sua ação.
Por outro lado a atividade mediadora na comunidade verdadeira significa para Marx o dinamismo relacional, o ato humano, ato social, mediante o qual os produtos dos homens se completam uns aos outros, pois os homens produzem uns para os outros, independente forma social que se encontrem.Porém na sociedade mercantil o dinheiro, o capital, assumem o papel da atividade relacional, expressando, ao contrário, que esse ato humano, a atividade mediadora social, “encontra-se estranhada e convertida em atributo do dinheiro, de uma coisa material, exterior ao homem” (Marx, 1974: 126).   
Diante do dinheiro, o homem “se aliena desta atividade mediadora, ele é ativo apenas como um homem que se perdeu a si mesmo, desumanizado”, pois, continua Marx, “o homem mesmo deveria ser o mediador para os homens” (Marx,1974: 126-7), confirmando assim sua posição de como deveriam ocorrer as relações homem a homem, em que sua atividade manifestasse sua essencialidade, sua natureza ativa, consciente e auto construtora.
Observe-se que o mediador, o dinheiro, se destaca como ente cuja essência dissimulada sob a forma de instrumento multifuncional, do mercado, tem seu caráter concreto, sua historicidade apagada, tornando-se, como trata Marx, um hieróglifo social.  
A compreensão que Marx expõe sobre a sociedade mercantil, na abordagem originária de crítica à economia política revela o elevado nível de violência econômica encontrada na base de toda a atividade sob a forma social do capital, violência essencial na perpetuação da alienação e do estranhamento, formas impeditivas aos indivíduos de reconhecerem-se como auto construtores de si e de suas relações. Neste caso de violência por obliteração, a alienação e o estranhamento perpassam todas as relações sociais existentes entre os indivíduos e dissimula o nexo sócio histórico que lhes dá conjunto, remetendo-os ao isolamento individual no interior de sua sociabilidade.
Parte II
Sabemos, com Marx, que a história revela-se por um dinamismo de acentuada violência e que a violência esteve difusa em múltiplas situações históricas e sociais como guerras, a expansão territorial, a ganância política, o botim sobre as comunidades, etc.. Contudo, em suas primeiras investidas críticas, Marx já compreendera que a desumanização a que foram submetidos os indivíduos, na modernidade, deita suas raízes na alienação da propriedade, e consequente relações econômicas, categorias econômicas, organizadas para o capital, para a exploração do trabalho assalariado. Tais condições não estiveram presentes antes da acumulação primitiva, antes das modernas categorias econômicas, das modernas relações do capital na história da humanidade. Também a violência econômica não teve lugar antes da instalação dessas condições. A partir do momento em que vão de instalando as categorias do capital torna-se visível esse novo padrão histórico de violência, que irá contaminando as relações sociais até nossos dias, e promovendo um, cada vez mais notório, esvaziamento de conteúdo relacional humano, suporte da violência econômica desde seus momentos originários.    Na chamada acumulação primitiva do capital, capítulo de seu livro maior, O Capital, Marx resumirá as atrocidades cometidas nesse período de acumulação original. Nessa obra da fase madura, Marx procurou desfazer as enganosas conceituações que povoavam a literatura daquele período sobre a instalação do capitalismo observando que: “A acumulação de capital pressupõe a mais valia, a mais valia a produção capitalista e esta, por sua vez, de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação ‘primitiva’, prévia a acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida” (Marx, 2013:785).
As conceituações sobre a acumulação primitiva cuja explicação oficial vem a público como uma “anedota do passado”, diz Marx, distingue a existência de homens diligentes que conquistaram com seu próprio esforço, por seu labor, riqueza e fortuna, enquanto outros, “uma súcia de vadios”, encontraram-se condenados a “comer o pão com o suor de seu rosto”, dado sua natureza negligente frente ao trabalho. Em seguida ele observa que “Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma a violência” (Marx, 2013: 786) ou seja, foi por violência social e econômica que se estabeleceu a diferenciação entre classes  sociais desde inícios da acumulação prévia de capital. Marx desdobra sua análise buscando dar fundamentos à complexidade que envolveu a acumulação primitiva, iniciando por dizer que o enfrentamento de duas classes de possuidores, obviamente desiguais, esteve necessariamente presente: “de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que buscam valorizar a quantia de valor de que dispõem por meio da compra da força de trabalho alheia; de outro, trabalhadores livres, (...) livres no duplo sentido de que nem integram diretamente os meios de produção, como os escravos, servos, etc., nem lhes pertencem os meios de produção (...)” (Marx, 2013: 786). De fato, sua liberdade consiste em ter perdido todo e qualquer meio de produzir e reproduzir as condições para sua existência, para satisfação de suas necessidades humanas. Nesse sentido sua liberdade, isto é, a perda dos seus meios de vida, expressa a violência da alienação, a subsunção pela força, pelas armas, à propriedade privada. Acrescenta Marx que “Tão logo a produção capitalista esteja em pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior” (...) “por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não foi, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção” (Marx, 2013: 786). A partir desse momento a externalização de vida dos indivíduos nos processos de produção e reprodução da realidade material e intelectual converte-se em constante perda de si, o que confirma o momento original de subsunção ao estranhamento de si, dos outros homens e da realidade. 
A consolidação das classes se coloca, desde o período de “acumulação primitiva”, sob a forma de subordinação de uma classe por outra, de perpetuação de uma classe trabalhadora, pela perda violenta de qualquer meio de vida que não o emprego de sua força de trabalho, por salário, frente à outra classe que monopoliza os meios de produção e a liberdade de compra da atividade/capacidade de trabalho da primeira.  
Por outro lado o produtor direto, o trabalhador, só pode dispor de sua pessoa, e tornar-se assalariado, depois que deixou de estar acorrentado à gleba de terra e de ser servo ou vassalo de outra pessoa.
Mas, o tratamento dessa separação dos meios de produção da força de trabalho, como libertação do trabalhador, só pode se dar por um ponto de vista puramente burguês. Ao contrário, a história real mostrou como diz Marx, que só por violência os indivíduos se “convertem em vendedores de si mesmos”, isto é, “depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam” (Marx, 2013: 787).
A acumulação primitiva de capital manifestou o historicamente novo e elevado grau de violência no amplo espectro social em que foi se implantando, particularmente na Inglaterra, primeiro país a lançar-se nesse processo socioeconômico desde o período mercantilista. Marx observa que, “Com efeito, a usurpação da terra comunal e a conseguinte revolução da agricultura surtem efeitos tão agudos sobre os trabalhadores agrícolas que, (...) o salário desses trabalhadores começou cair abaixo do mínimo a ser complementado pela assistência oficial aos pobres. Seu salário (...) ‘já não bastava para satisfazer as necessidades vitais mais elementares’” (Marx, 2013: 799).
Ocorre que tal processo veio se desenvolvendo desde o século XV, e continuou até o século XVIII, numa luta inarredável para consolidação das formas de exploração do capital, e por força de uma violência econômica sem trégua por mais de três séculos. Marx retoma nessa parte de O Capital, aspectos da violenta expropriação das terras utilizadas pela população européia que resultou em sua expulsão e degradação às piores formas de sobrevivência desses que foram adensando as massas excluídas: “Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo.” (...), daí sua transformação em trabalhadores assalariados: “Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado” (Marx, 2013: 808).
O processo histórico de desenvolvimento capitalista consistiu numa cruel violência econômica, pois condena a uma subsunção cotidiana massas de trabalhadores se recolherem por mais da terça parte diária de sua vida[1] em atividades que não lhes diz respeito individualmente ou mesmo controlam, submissão essa sem a qual sua subsistência estará irremediavelmente ameaçada. A essa situação, já inteiramente inadequada à vida dos indivíduos, agrega-se a concorrência periódica das crises do capital, crises de superprodução que afetam negativamente as já sofríveis condições de vida dos produtores diretos. Durante as crises a desumanização a que Marx veio se referindo em sua Acumulação Primitiva se repõem e com uma intensidade sempre mais cruel sobre os trabalhadores em geral.
Com o tema da crise afastamo-nos do período em que vicejaram as análises de Marx sem afastarmo-nos do seu conteúdo analítico, de sua compreensão posta de manifesto diante da violência econômica que emerge das crises.
Parte III
Com a análise das crises um novo enfoque nesse caráter desumanizador do capital, na violência econômica se patenteia. O século XX inicia com os fortes indicativos do enfrentamento bélico que ocorrerá na Europa, em particular na Alemanha, a partir de 1914, guerra movida pela concorrência internacional decorrente da acumulação monopólica do capital e que submeteu parte significativa da humanidade ao genocídio, e quando não à degeneração física e intelectual.
 Encerrada a guerra, o processo de reconstrução da Europa através do Plano Dawes de estabilização econômica e financeira da Alemanha, coincide com um forte impulso industrial Norte-Americano. Nesse país o excesso de liquidez gerado pela expansão econômica resultou em especulações com capital fictício e decorrente “quebra da Bolsa de New York”. Até início de 1929, os Estados Unidos encontravam‑se dentro da mais favorável situação econômica desde o período anterior à Primeira Guerra; a taxa de desemprego atingira 0,9% da população ativa.
Contudo a reversão do processo acumulativo ascendente sinalizou a proximidade de uma superprodução que pode ser dimensionada pelos seguintes dados: “A produção industrial declinou 28% entre 1929 e 1931. O desemprego atingiu 16% da população ativa em 1931. Isto equivale a dizer que o numero dos desempregados, 429 mil em 1929, aumentou para 7 milhões em 1931 revelando a clássica crise de superprodução que se instalara e atingira a população dos EUA de forma violenta e duradoura.
Aludimos aqui, também, à violência econômica que desde os anos 1930 se instalou na Rússia Soviética, violência econômica no pós-capitalismo, pela presença de um capital coletivo-não social (Chasin, 1983: 31), incrementada pela opressão stalinista que alienou e submeteu a população trabalhadora a longas e penosas jornadas diárias de trabalho, pautando-se na concorrência com o capitalismo, dissimulada pela construção de um socialismo subjetiva e objetivamente impossível. Essa forma social não teve sua superação antes do período de mundialização do capital nos anos 1990, com o fim da URSS.
De forma que a violência econômica da primeira metade do século XX está explicitada em situações históricas como: a do capital estagnado e do stalinismo na URSS, os antecedentes e as consequências da 1ª guerra (1914/1918), as repercussões mundiais da crise de 1929, e neste caso, acrescente-se, não se vislumbrará sua superação, pois, “A última crise que os EUA viriam a conhecer antes da guerra durou de setembro de 1937 a junho de 1938. A produção industrial recuou 30%, enquanto o número de desempregados se eleva de 6,4 milhões em 1937 para 10 milhões em 1938” (Flamant; Singer, 1983: 81) repercutindo na realidade socioeconômica até a deflagração da 2ª guerra (1939/1945).  
A 2ª guerra reporá, de forma muito mais ampla e intensa, toda a dramaticidade e desumanização que a primeira guerra havia criado. As lutas no interior do capital imperialista para conquista da hegemonia econômica revelou os horrores de um enfrentamento bélico posto pelos gigantescos núcleos monopólicos do capital cumpliciados com os estados nacionais em concorrência. É claro que tratar da violência econômica neste quadro da 2ª guerra é pura expressão de obviedade, bastando lembrar que o holocausto teve na economia uma das maiores das suas motivações.
Mantendo-nos apenas na esfera dos países imperialistas observamos que as décadas de cinquenta e sessenta tiveram sua economia conduzida com destacada euforia pelo pensamento liberal, alardeando, o fim das crises, o desaparecimento (em breve) do socialismo, o necessário freio para as aventuras bélicas (posto pelo desenvolvimento atômico), mas tudo isso permeado pela violência econômica que se generalizara com os efeitos da guerra fria. A prosperidade desses anos não tardou revelar os novos problemas de uma crise de superprodução que se avizinhava já nos primeiros anos da década de 1970.
Entre 1971 e 1975, aprofundou‑se o desemprego nos países imperialistas, sinalizando a desaceleração da economia em geral. Durante mais de 20 anos, a acumulação de capital contou com recessões leves – como em 1960/1961 e 1966/1967, mas naquele momento, 1972 o número de desempregados passava de 10 milhões para 17 milhões. Essa crise revelou um novo aspecto dentro das crises de superprodução, tratado por Mandel como crise estrutural. “Podemos deduzir uma não‑utilização quase permanente, para fins civis produtivos, de perto de um terço da capacidade instalada de produção nos Estados Unidos”.
O restante dos anos da década de 1970 e a maior parte da década de 1980, o capital superdesenvolvido conviveu com baixas taxas de crescimento e procurou transferir para a periferia do sistema as contradições que dificultavam seu desenvolvimento; as barreiras aí encontradas tiveram que ser quebradas e os países periféricos do capital foram sendo incorporados, com pouca resistência, aos interesses imperialistas, através da quebra dos protecionismos nacionais que limitavam à ação dos grandes capitais. Essa etapa tratada por mundialização do capital legou aos países periféricos uma violência econômica que se sobrepôs às formas de exploração e violência que já ocorriam, como por exemplo, a da superexploração da força de trabalho e da marginalização humana, característica desses países acrescida agora da exclusão humana resultante do desenvolvimento e expansão tecnológicos implantados na sua base produtiva.
Observe-se que as crises do século XX, acentuaram a exclusão humana ainda mais, pela emergência de novas relações pautadas nos novos padrões tecnológicos, cuja obsolescência, pelo aprofundamento da concorrência imperialista resulta na expulsão de parte dos trabalhadores, sem a reincorporação dos já excluídos. De maneira que a exclusão se torna, neste século e no XXI, o mais novo componente objetivo a incrementar o estranhamento, a alienação, e a violência que integra avanço do capital. A violência econômica tomou um porte tão elevado que parte significativa da sobrevivência humana encontra-se, necessariamente, (a despeito das oposições neoliberais) sujeitas aos subsídios públicos, tipo moderninho de esmola que dissimula, em parte, o barbarismo causado pelo agigantamento do capital. Pode se dizer que o excesso de capital (criado pelo trabalho), isto é as crises de superprodução, o excedente de valor sob todas as formas conhecidas, exclui parte da humanidade de qualquer convívio social produtivo. Mesmo a forma mais positiva do valor, a do desenvolvimento das forças produtivas, acabou por tornar-se a responsável maior pela exclusão das massas humanas e pela sua condução aos estoques sociais de mão de obra inútil. 
Conclusão
A abertura do século XXI não alterou o padrão das relação sociais do capital afetando ainda mais as relações capital-trabalho, pois as crises repicaram novamente partir de 2007, centradas no capital fictício, como ocorreu em 1929, mas com consequências maiores, em termos da expansão e profundidade atingidas, pois se apresentou antes mesmo da crise efetivar-se, uma exclusão planetária de aproximadamente 1,4 bilhões de indivíduos com um agravante: não conseguimos ainda vislumbrar manifestações consistentes na direção da superação deste quadro de horripilante desumanização, ao contrário, as notícias revelam constante reposição da superprodução e conseqüentes depressões econômicas que só reafirmam as enunciações acima. A questão está em que – a cada ciclo e a cada crise – aprofunda‑se o caráter inumano do capital e não se vislumbra qualquer alternativa viável para retirar a humanidade dessa violência e desse desumanismo, que dilacera objetiva e subjetivamente os indivíduos, destrói pela fome centenas de milhões deles em meio à elevada e extremamente requintada produção de mercadorias.
Vale aqui remetermo-nos à compreensão de Mandel sobre a forma estrutural que tomaram as crises do capital, desde as duas últimas décadas do século XX, demonstrando a hiper-acentuada instalação produtiva como responsável pelos danos sociais que as crises sempre causaram, e sendo a superprodução forma integrante da lógica do capital, somente sua supressão pode abrir para o resgate humano do homem. 
Referências bibliográficas
Marx, Karl, Cuadernos de Paris [Notas de Lectura de 1844]. México, Ediciones Era, 1974.
-, O capital – Crítica da Economia Política, São Paulo, Boitempo Editorial, 2013.
Chasin, José, “Da Razão do Mundo ao Mundo sem Razão”, in Ensaio nº 11/12, São Paulo, Escrita- Ensaio, 1983.
Flamant, M.; Singer‑Kerel, J, As crises econômicas. Portugal: Publicações Europa‑America,1983.
Mandel, E, A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo: Ensaio, 1990.


[1] Certamente nos três primeiros séculos de implantação capitalista a jornada diária de trabalho chegou a 12, 15, e até 18 horas. 

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