20/04/2024

Flusser, imagem técnica e arte na pós-história

Por

 Flusser, imagem técnica e arte na pós-história

 
Valéria Ramos de Amorim
Doutoranda em Estética e Filosofia da Arte do programa de pós-graduação do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.
diamorimcult@gmail.com
 
Frequente é a asserção de inúmeros pesquisadores ao longo das últimas décadas acerca das alterações pronunciadas na sociedade em função dos constantes avanços tecnológicos e científicos, os quais, asseguram, promovem infindáveis alterações: seja nas ciências, seja no modo como humanos se portam e compreendem seu ambiente, seja também na maneira como se conformam os processos estésico-comunicacionais contemporâneos. No que se refere especificamente ao deslocamento representacional, são igualmente abundantes os discursos que asseguram à urgência de se considerar a relevância das modificações provocadas pelo advento das tecnologias digitais e de suas constantes modificações e implicações aos processos de produção de sentido.
Certo é que os aparatos tecnológicos licenciaram o desenvolvimento de imagens (muitas das quais podem ser comparadas à verdadeiros objetos digitais) que não mais figuram o real, mas o simulam. Para Lévy (1998), tais imagens não representam um real organizado, tal qual o proposto pelas imagens ópticas (onde cada ponto da imagem corresponderia a um ponto específico do objeto real “apreendido/capturado” pelo olho humano); mas representam o que pode ser modelado/programado. Nelas, nenhum ponto (pixel) corresponde a um objeto real pré-existente, uma vez que atualizam uma dada matriz numérica abstrata. Por assim ser, são intituladas por muitos pensadores dos media como imagens de síntese. Por imagens de síntese (ou, como prefere o filósofo Vilém Flusser:  1920-1991, imagens técnicas), compreendem-se, então, as superfícies visuais produzidas em meio digital, desenvolvidas por intermédio de fórmulas matemáticas e/ou conceitos, e que não guardam, necessariamente, vínculos com um referente material pré-existente.
Parente (2001), citando o pesquisador Edmond Couchot, lembra a distinção feita por este entre as técnicas figurativas ópticas e as técnicas figurativas computacionais. Desta última, resultou a produção das imagens técnicas, as quais são produtos de linguagem matemática, cálculos numéricos, algoritmo, e não da captação fotomecânica de uma realidade física. Tais imagens, conforme frisado previamente, são o resultado direto da figuração computacional. Por assim ser, a realidade que tais imagens modelam só existe enquanto realidade simulada. Entretanto, tais imagens são capazes de substituir perfeitamente fenômenos e experiências reais, por serem um tipo de instrumento aperfeiçoado de representação, que possibilita a figuração, inclusive, de fenômenos materiais que não são apreendidos pelos sentidos humanos (é o caso das representações de cunho científico, de simulação tecnológica e de modelagem de situações e objetos possíveis). Por assim ser, a imagem técnica representaria não mais a experiência sensível, mas a experiência potencial. Como sugere Plaza (1998), estas imagens
não mais se apoiam na relação olho cérebro (...) mas sofrem uma ampliação por causa dos conversores eletro-ópticos. Estes aparelhos permitem a aquisição, tratamento e visualização de dados, além da percepção do espectro luminoso visível, que pode ser comunicada às máquinas que multiplicam as visões de mundo. A imagem torna-se numérica e tributária, não mais da relação homem mundo, mas da trilogia homem-mundo-máquina.(Plaza, 1998: 36)
Imagens de Síntese, como representação de formas mentais ou visuais com a ajuda de algoritmos e programas. Modelização, construção e simulação são termos chave. Estas imagens resultam de um trabalho de construção de modelos lógico-matemáticos em duas ou três dimensões (2D e 3D) e não por tomadas de visão do “mundo visual”. As imagens construídas a partir de programas que codificam os objetos que representam, embora sejam realistas e referenciais, não possuem um referente no mundo, pois são imagens conceituais. (Plaza, 1998: 23)
Por ser uma imagem-matriz, seu controle morfogenético e sua atualização efetua-se ao nível dos pixels, ou via códigos de programação, o que confere ao designer de produção o acesso direto a cada “átomo” constituinte da imagem e o permite intervir alterando-lhe a constituição e visualização indiscriminadamente. Daí a ruptura que esse processo de fabricação distingue na história da criação de visibilidades e da busca pela automação de imagens. A modelização, que pode ser compreendida como sinônima de simulação e “experimentação simbólica”, instaura uma outra maneira de criar visibilidades/imagens geradas por algoritmos. Ela consiste em descrever matematicamente um objeto ao computador que na sequência o oferece exibido sobre a tela. Nesse caso a fonte da imagem não é, necessariamente, como exemplificado anteriormente, o real físico, mas a descrição matemática (um sistema representado). Quando assim constituída, fala-se em imagem de síntese/técnica, e tem por objetivo atuar como “réplica computacional da estrutura, do comportamento ou das propriedades de um fenômeno real ou imaginário” (Machado, 2001: 117). Por ser desenvolvida com o auxílio de algoritmos, é uma abstração formal (um modelo) passível de ser perenemente modificada, ordenada e reordenada em combinações infinitas.
Vilém Flusser (1920-1991) debruçou-se reflexivamente sobre o momento precedente ao início da produção acima delineada e às primeiras décadas de implementação da criação artística por meio do aparato digital. Considerado um desses filósofos capazes de apreender tempo e espaço em mutação e fazer de instâncias em devir elementos de inquietação e consequente análise – um verdadeiro exercício de crítica enquanto transcendência de jogos; diria o pensador –, tornou-se referência entre os estudiosos da filosofia dos media. Em fase tardia de sua produção intelectual, dedicou-se à Teoria da Comunicação a qual entendia implicar na teoria da decisão e na dos jogos. Por meio dessa última, identificou a arte como campo de liberdade.
A primeira fase do pensamento filosófico flusseriano, e que ressoa no corpus de sua produção posterior, circula em torno do entendimento de que língua cria mundo (enquanto conjunto organizado/cosmos de representações). Logo, para a filosofia flusseriana, não existe realidade fora da formulação linguística. Língua é mediação, meio a partir do qual se expressa e no qual se expressa. Por assim entender, a realidade para o pensador se dá mediatizada linguisticamente e o que está fora desse construto é o nada, o indizível enquanto ponto de partida para que a realidade, ela mesma, possa se estabelecer por meio do ato criador autêntico. Outrossim, língua e imagem são compreendidas na obra flusseriana como dimensões da realidade cuja função é a mesma: armazenar informação e promover a posteriori a comunicação humana. Por assim ser geram memória e cultura.
O termo cultura pode ser entendido como a forma como manipulamos objetos, a forma de irmos contra a determinação do ambiente, exercendo liberdade. Essa forma de manipular objetos é ordenada por modelos que são “propostas de como devem ser os objetos depois de informados”. Isso significa que os objetos ao serem modificados pelos seres humanos, são informados por ele, transformados em formas de comunicação entre os homens. Esses objetos modelados podem ser caracterizados como epistemológicos, éticos e estéticos. “De modo que todo objeto cultural é, sob certo ângulo, “obra de arte”, sob outro “objeto útil” (ético), e sob mais outro “objeto atestando determinado conhecimento”. (Costa, 2007: 27-28)
 
Flusser (2007) é precioso também quando analisa a arte, a cultura e a comunicação enquanto artifícios do humano e da capacidade deste em instituir sentido ao vivido e em manipular o meio onde habita a exaustão. Para ele,
O homem, desde sempre, vem manipulando seu ambiente. É a mão, com seu polegar oposto aos demais dedos, que distingue a existência humana no mundo. (...) as coisas são apanhadas para serem transformadas. A mão imprime formas (informiert) nas coisas que pega. E assim surgem dois mundos ao redor do homem: o mundo da “natureza”, das coisas existentes (vorhanden) e a serem agarradas, e o mundo da “cultura”, das coisas disponibilizadas (zuhanden), informadas. Ainda há pouco se acreditava que a história da humanidade era um processo de transformação progressiva da natureza em cultura (...). Hoje, essa opinião, essa “fé no progresso”, deve ser renegada. De fato tem se tornado cada vez mais evidente que a mão não deixa em paz as coisas informadas, mas sim continua agitando-as até que se esgote a informação que contém. A mão consome a cultura e a transforma em lixo. Portanto, não são dois mundos que circundam o homem, mas sim três: o da natureza, o da cultura e o do lixo. Esse lixo tem se tornado cada vez mais interessante (...). O que se constata é que o lixo retorna para a natureza. A história humana, portanto, não é uma linha reta traçada da natureza à cultura. Trata-se de um círculo, que gira da natureza à cultura, da cultura ao lixo, do lixo à natureza, e assim por diante. Um círculo vicioso. (Flusser, 2007: 60-61)
Por assim compreender, o pensador assevera ser a comunicação humana um astuto engenho erigido com o objetivo de fazer esquecer a total falta de sentido que é a própria vida humana condenada à morte. É artificio, obra contranatural, por ensejar a preservação, o acumulo de informação e por consequentemente gerar a produção de lixo inanimado como resultante do próprio projeto contra a decadência imanente. Conforme explicitado na citação acima, no entendimento flusseriano esse mesmo lixo retorna ao meio natural e nesse opera modificações significativas que findam por alterar o estar no mundo e o próprio mundo em seus contornos iniciais.
Ao debruçar-se sobre as conformações da cultura ocidental posterior à revolução tecnológica do séc. XX, o pensador, por espécie de redução fenomenológica, promove uma apreensão peculiar dos estágios da humanidade e de suas produções específicas – no que se refere ao ato de comunicar-se e ao estar no mundo como ser-para-a-morte – e os divide em três regimes distintos. O primeiro regime, identificado como Pré-História, caracteriza-se pela produção de imagens pictóricas, tradicionalmente produzidas pela tomada de visão do mundo real, onde cada ponto da imagem corresponderia a um ponto específico do objeto real “apreendido/capturado” pelo olhar e representado/informado pela mão manipulação humana.
Tais imagens são uma espécie de superfícies abstraídas de volumes (Flusser, 2008: 15), pré-alfabéticas, e representam um momento do estágio humano cuja consciência seria imagística: nesta etapa o mundo seria um contexto de cenas vivenciado e inteligido via mediações bidimensionais. Imagens funcionariam como mapas capazes de orientar o homem em sua incursão pelo mundo. Entretanto, como qualquer mediação, assevera Flusser, possui uma espécie de dialética interna – ao mesmo tempo em que representa o mundo é capaz de se interpor entre a realidade constituída pela apreensão do intelecto humano e o próprio homem em seu ato gnosiológico –; logo, imagens passaram a encobrir o mundo transformando os homens em instrumentos alienados.
O segundo regime, classificado como História, evidencia-se como aquele cuja origem situa-se justamente no momento em que imagens míticas tradicionais deixam de simbolizar o mundo para encobri-lo. A invenção da escrita surge contra os processos de idolatria e intenta desmistificar as imagens: explicando-as; alinhando-as; tornando contáveis as situações. Para Flusser (2008), tal processo consistiu em “desenrolar e desenvolver as cenas”, o que significa “escrever textos” e “conceber o imaginado”. A consciência textual concebe o mundo como contexto de processos (Flusser, 1993: 99). Nela a realidade é apreendida como devir e por assim ocorrer, com o surgimento da escrita, a consciência passa a ser histórica. Todavia, esse segundo estágio não suplanta o primeiro e imagens passam a conviver com textos e entre esses universos há feedback: “imagens ilustram textos e textos descrevem imagens” (Flusser, 1983: 99). A própria sociedade ocidental passa a ser constituída por aqueles que compreendem o mundo imagisticamente (iletrados) e os que o entendem textualmente/historicamente (letrados).
Com o barateamento dos processos de impressão, Flusser explica que os textos tornaram-se acessíveis e as imagens se retiraram do cotidiano e passaram a habitar ambientes a ela edificados (museus, entre outros espaços reservados à preservação e fruição imagética). Ao tornarem-se puramente conceituais, os textos não mais explicam imagens e passam obedecer a uma dinâmica interna que findou por ocultar o mundo. Exemplo dessa ocorrência encontra-se no desenrolar da ciência cujos textos puramente conceptuais não permitem que suas mensagens possam desmistificar imagens e torná-las claras e distintas ao entendimento humano. Ao contrário operam uma alienação de modo que o homem passa a agir e a operar em resposta à linearidade discursiva/textual. Segundo Vílém Flusser, textos des-alienam e alienam o homem. Para ele, com a “textolatria” (espécie de niilismo em função da fé excessiva depositada no intelecto) entrou em crise o período por ele identificado como história e a partir desse momento iniciou-se o estágio nomeado como Pós-História.
O marco dessa nova etapa no curso da humanidade é a invenção das imagens técnicas (fotografias, filmes, vídeo, imagens televisivas, hologramas, etc). Entre essas, Flusser identifica a fotografia, primeira imagem produzida por aparelhos (instrumentos dotados de programa e que propõem um jogo), como o paradigma de todas as imagens técnicas. Para o pensador, elas são “instrumentos para tornar imagináveis mensagens de textos” (Flusser, 1983:100). A meta seria tornar textos indubitáveis à vivência concreta. Diferentemente das imagens pictóricas elas têm sua origem em aparelhos, adverte. São “caixas pretas” que, por intermédio de programas, transcodificam sintomas em símbolos, o que inaugura um novo modo de decodificação de mensagens (e também de codificação, poderíamos aludir). As imagens pós-históricas, no entender flusseriano, foram codificadas para colocarem um fim à loucura conceptual e tornar apreensível textos. No entanto, frente a tais imagens, boa parte da humanidade é totalmente desprovida de capacidade de deciframento (tecnoimaginação) de seu conteúdo significante, adverte o pensador.
A Pós-História comportaria, pois, as etapas precedentes sem, contudo, esgotá-las. Ao contrário, possuiria a capacidade de sugar tais etapas para o interior de seus aparelhos e as transformariam em eterno retorno. Em função dessa operação, as imagens técnicas significam para Flusser eventos e geram uma re-magicização do mundo pela via da prescrição, o que finda por oferecer a realidade como contexto programado. Por encontrarem-se ao nível da consciência pós-histórica, as imagens técnicas são de difícil compreensão e sua decifração requer alto nível de decodagem, visto que tais imagens são decorrentes de programação fundamentada em teorias tecnocientíficas.
Outros sim, a peculiaridade da Pós-História encontra-se no o conceito de “programação” da existência humana, sobrepujando noções precedentes como “destino” e “causalidade”. Flusser adverte que a visão programática é a do “absurdo”, por ter como conceito fundamental o “acaso” – visto a capacidade dos programas – conforme explicitado previamente – se automatizarem à revelia dos ensejos de seus programadores. A proposta é a do jogo pelo jogo perenemente. Uma saída para essa ocorrência seria aprender a assumir tal absurdo por meio de um “comportamento aparelhístico” capaz de suplantar os aparelhos e a própria programação. O exercício da “Arte Vampyroteuthica” – ficção filosófica criada pelo pensador, em que o próprio organismo passa a funcionar como aparelho – findaria por dispersar e dispensar a programação, impedindo que a imaginação e a vontade se tornem programadas; capacitadas apenas à transmitir informação igualmente programada. A arte produzida com e contra o aparelho seria, para o pensamento flusseriano, a única saída para extirpar a reificação, impedindo que o homem venha a se tornar coisa/programada e mantenha-se na condição de sujeito/programador.
Conforme apreendido, para Flusser o único antídoto à programação dos aparelhos é a criação artística/poética. Por tratar-se de exercício criativo extremo, colocaria em cheque o predomínio dos aparelhos. O exercício da “Arte Vampyroteuthica” – aquela que propõe que o próprio organismo venha a funcionar como aparelho – recairia sobre a programação como uma espécie de anti-programa por excelência. No entanto, o pensador não desconsidera a possibilidade do próprio aparelho se reprogramar e funcionalizar a própria arte, numa espécie de determinismo tecnológico duramente criticado por muitos pesquisadores e estudiosos (ver Machado, 2001).
Contundente em seus apontamentos, Vilém Flusser assevera, como apreendido anteriormente, o papel privilegiado das imagens técnicas no delineamento da condição sociocultural e estética por ele intitulada Pós-História. Todavia, para além dos estudos e apontamentos realizados pelo pensador, apreende-se que algo mais radial e substancioso parece ocorrer a partir da intitulada “revolução tecnológica” iniciada no séc. XX. Nesse contexto de análise, apreende-se que as transformações estruturadoras desse estágio, conforme delineado no início desse artigo, encontram-se mais radicalmente na digitalização da informação por meio da linguagem binária (numérica) capaz de operar como denominador comum de toda informação existente em ambiente computacional, seja ela: sonora, visual, textual ou tátil.
Em alguma medida Flusser atinou para essa radicalidade pós-histórica que vai além do delineado pelas próprias imagens técnicas. Em um compêndio de textos publicados postumamente, esclarece que antes das tecnologias algorítmicas objetivava-se formalizar o mundo existente; após esta incursão, tencionou-se realizar as formas projetadas para gerar mundos alternativos. Isso é o que entende por “cultura imaterial”, mas deveria na verdade chamar “cultura materializadora” (Flusser, 2007: 31). Fato é que, a partir da linguagem numérica, passou-se a “codificar o mundo” de modo mais radical: bit, algoritmos e outros desenvolvimentos tecnocientíficos tornaram executável a interpretação do conhecimento do real (físico) — e mesmo do real que se afigura como mera possibilidade — numa linguagem assimilável pelo computador. Nesse contexto criativo, tanto imagens técnicas como os demais tipos sígnicos (música, gesto, a obra tátil, entre outras) são a expressão de uma codificação numérica gerada por programas computacionais alimentados por algoritmos e cálculos.
Nesse sentido, modelos e simulações têm proliferado de modo significativo e multiplicado a criação de mundos artificiais — cujas possibilidades experimentais são ampliadas sem que um único objeto real/físico seja mobilizado — que perpassam a tessitura sociocultural em todos os níveis alterando a logística da percepção, diria Virilio (1993), e remodelando o real físico ao atualizar realidades desconhecidas (não diretamente registráveis) ou mesmo reformulando o regime de visibilidades e mesmo de sonoridas (entre outros perceptos) ao abrir espaço para a atualização (tornado ato) de mundos puramente prováveis oriundos da capacidade imaginativa/especulativa materializada em conceitos processados numericamente. Haja vista o novo conceito vigente nos meios artísticos digitais experimentais contemporâneos: o da realidade misturada; a qual pode ser definida como ambiente criado com o auxílio de dispositivos tecnológicos, onde ocorre a sobreposição entre objetos virtuais gerados por computador e objetos reais/físicos. Sobre o tema consultar AZUMA (1997 e 1999).
Exemplarmente, tanto a produção contemporânea de imagens quanto a produção musical eletroacústica (nossos modelos de simulação mais palpáveis) aprimoram a produção técnica/sintética (aquela que consiste em descrever matematicamente um objeto visual, sonoro ou de outra ordem ao computador que na sequência o oferece exibido em sua tela e caixas acústicas). Todavia, há de se ressaltar que a matriz numérica condicionada numa memória de computador, seja ela produzida pela captação direta de um objeto ou conformada diretamente com o auxílio de softwares de criação, preserva determinada abertura criativa justamente por ser sinais codificados disponíveis à manipulação criativa a partir da modificação ad infinitum de seus coeficientes. Por essa razão, no ambiente próprio à computação gráfica, o mundo da vida, conhecido e fisicamente experimentado, é apreendido como mera possibilidade de atualização do próprio universo conceitual que se intenta apresentar.
Aparentemente contraditório, há de se destacar que o mundo codificado artificialmente é pré-condicionado, digerido, dirigido. Ao invés de ser a abertura ad infinitum do campo do possível é sua redução às dimensões de uma ou vários coeficientes numéricos. Daí serem obras absurdas, pois, teria o acaso tornado necessidade. Sendo assim, tanto as imagens técnicas quanto os sons sintéticos, por serem resultado dessa operação, findam por apontar para si mesmos. Embora venham a ser uma redução do universo conceitual que atualizam, visto não o expressar em sua totalidade probabilística de conformação, é importante ressaltar a capacidade que tais construtos digitais possuem de tornar sensível o que era mero pensamento formal. Imagens e sons sintéticos oferecem, em alguma medida, respectivamente à visão e à audição elementos inéditos, e instauram peculiares modos de fruição.
Pelo exposto, acredita-se que apenas a compreensão e constatação da existência do substrato numérico nas criações poéticas digitais permitem a afirmação flusseriana acerca da musicalização da imagem e da imaginação da música. Do mesmo modo, se – conforme assente Heidegger (2010) – a obra de arte efetiva uma possiblidade, explicitando nexos de abertura, criando injunções históricas por sua potência de permanência, abre-se, a partir da produção artística por intermédio das tecnologias digitais, alguns questionamentos ainda não respondidos.
O que intuir a partir da liquidez (dada a abertura morfogênica da matriz numérica) dos conteúdos e constructos digitais? Que tipo de porosidade tais obras instauram na natureza e na cultura? Mesmo que obras possam ser criadas pós-historicamente – como assevera Danto (2014) – por um rescaldo de vitalidade desaparecida (espécie de existência negativa) e – segundo Flusser (2007) – pela potência e originalidade da imaginação humana (espécie de existência positiva), o que se poderia especular a respeito da arte contemporânea em sua fluidez permeada pelo aparto digital? Seria ela obra de arte ou mero modelo de conhecimento? Dada a sua constituição e substância moldadas pela composição multidisciplinar (pois em sua conformação atuam artistas plásticos, engenheiros e designers de som, programadores, entre outros profissionais), ainda caberia o conceito de arte como área autônoma e delimitada com precisão?
Por assim ser, crê-se imprescindível o desenvolvimento de pesquisas em âmbito da teoria crítica e da análise filosófica da estética e das artes contemporâneas permeadas pelo aparato digital, de modo a compreender em que medida a absolutização dos media, das tecnologias digitais em perene aperfeiçoamento e do poder econômico instauram (ou não) uma “violenta programação” da existência humana e criam índices de barbárie e violência sociocultural antes inimaginados. Neste contexto seria a arte uma, ou mesmo a única, válvula de escape desse sistema aparentemente engessado – conforme proposto por Vilém Flusser?
 
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