Assédio moral no trabalho: uma revisão da produção bibliográfica brasileira na base Scielo
Rita de Cássia R. Louzada (Instituto de Psiquiatria-Universidade Federal do Rio de Janeiro)
ritalouzada1@gmail.com
Introdução
Este trabalho surge a partir de uma experiência com estudantes de graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), em uma disciplina onde se estuda o campo “saúde do trabalhador”.
Percebendo que as bases de dados, que agregam periódicos online, eram muito utilizadas pelos estudantes, passei a me perguntar sobre o perfil dos textos acessados. Desenhei, então, um projeto de pesquisa que visava mapear esse material em várias bases brasileiras. Aqui apresentaremos dados parciais desse projeto, uma revisão bibliográfica sobre o tema do assédio moral no trabalho, na base Scielo (Scientific Eletronic Library Online)
[1].
Trataremos “assédio moral no trabalho” - e não apenas assédio - porque consideramos, aqui, o trabalho como categoria central para pensar a realidade social e a constituição de sujeitos.
Além disso, reconhecemos, com Antunes (1995, 1999, 2012/2003), que o trabalho está cada vez mais problemático, mas mesmo assim ainda tem grande relevância para os sujeitos. Os trabalhadores precarizados e flexibilizados no capitalismo de hoje, estão submetidos à administração toyotista, onde se vê uma certa desverticalização da organização do trabalho, a produção just in time, trabalhadores multifuncionais, sindicalismo de empresa (Antunes, 1995).
Neste cenário, os trabalhadores são cada vez mais chamados a se “integrar”, a “colaborar”. Referindo-se ao trabalho bancário, o mesmo Antunes (2002/2003: 21) nos fala de algumas dessas ferramentas gerenciais:
“[...] os programas de “qualidade total” e de “remuneração variável”, amplamente difundidos no setor, recriam estratégias de dominação do trabalho que procuram obscurecer e nublar a relação capital e trabalho. Os trabalhadores bancários são constrangidos a tornam-se “parceiros”, "sócios”, “colaboradores” do bancos e das instituições financeiras, num ideário e numa pragmática que aviltam ainda mais a condição laborativa. (Jinkings, 2002).”
No Brasil esse processo se amplia de modo importante na década de 90, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Políticas gerenciais consideradas por alguns como “inovadoras” surgem e com elas a competitividade é apresentada como algo naturalizado, os postos de trabalhos são reduzidos, os trabalhadores cada vez mais sobrecarregados, com cobranças intensas por metas.
Antunes também se refere ao modelo japonês de gestão – via bancários -, com suas características e apontando claramente uma tendência ao aumento
“[das] formas precárias de contratação, os assalariados bancários são compelidos a desenvolver uma formação geral e “polivalente”, na tentativa de manter seus vínculos de trabalho, sendo submetidos à sobrecarga de tarefas e a jornadas de trabalho extenuantes. Agravaram-se os problemas de saúde destes trabalhadores/as nas últimas décadas e observou-se também um aumento sem precedentes das Lesões por Esforços Repetitivos (LER), que reduzem a força muscular e comprometem os movimentos daqueles que são portadores da doença.”
Trabalhadores precarizados, cansados ou doentes são consequência. Fragilizados, terminam questionando pouco as relações de trabalho a que estão submetidos. É E é nesse contexto, que, em nossa avaliação, o fenômeno do assédio moral no trabalho ganha espaço. É nesse contexto que, salvo melhor juízo, o assédio moral ganha espaço e tem também boa chance de crescer.
Partindo daí, passamos a refletir sobre o que vem ocorrendo no Brasil: os registros de assédio moral no trabalho têm aumentado, sim, ao longo do tempo. Apenas em 2013, o Ministério Público do Trabalho registrou mais de 3.600 casos em todo o país
[2]. Se considerarmos que nem todos os assediados fazem registros dessa situação de violência, o quadro se configura, a nosso ver, como preocupante. Há, sem dúvida, subnotificação de assédio moral exercido no trabalho.
A definição de assédio moral no trabalho, assumida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) brasileiro envolve “qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, escritos, comportamento, atitude etc) que, intencional e frequentemente, fira a dignidade e a integridade física ou psíquica de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho”. Temos aí a posição governamental. Mas, para além disso, perguntamo-nos: como estaria sendo discutido o assédio moral no trabalho pelos pesquisadores brasileiros? Como isso aparece na base Scielo?
A utilização desta base de periódicos brasileiros, de caráter multidisciplinar e acesso aberto, ganha relevância aqui pelo grande número de acessos, especialmente por estudantes brasileiros, desde os primeiros anos da universidade. Dessa maneira, a difusão das ideias presentes ali se destaca, seus artigos alcançam um grande público, seja exatamente por conta do acesso aberto, seja pela possibilidade de leitura em língua portuguesa. Se os estudantes têm acesso fácil a essa produção, perguntamo-nos, por extensão: o que exatamente estão lendo sobre esse tema? Qual o perfil das publicações veiculadas nessa base?
No levantamento realizado até aqui, utilizamos, como descritor de assunto, a expressão assédio moral no trabalho. Feito isso, foi possível encontrar um total de 30 artigos sobre o tema na base Scielo. Desse total foram eliminadas as repetições e, ao final, foram efetivamente revisados 28 textos.
O material
Com diversos perfis, os textos encontrados, na maior parte, eram pesquisas empíricas (Battisteli, Amazarray & Koller, 2011; Fontes & Carvalho, 2012; Cruz, MVG; Sarsur, & Amorim, 2012; Martins & Ferraz, 2012) e ensaios (Heloani, 2004; Freitas, 2007; Soares, 2012; Bobroff & Martins, 2013). Em menor número encontramos revisões bibliográficas (Cahú et al, 2011; Glina & Soboll, 2012), pesquisa documental (Garbin & Fischer, 2012 ), resenha (Garcia & Tolfo, 2011) e apresentação de volume temático (Soares & Oliveira, 2012). Vale ressaltar que as pesquisas empíricas apresentavam design qualitativo e quantitativo. Chama a atenção que o material vai desde validação de teste para detecção do fenômeno, portanto pesquisa quantitativa, até entrevistas e histórias de assediados (Schlindwein, 2013). Ou seja, encontramos uma grande variedade de instrumentos e desenhos metodológicos.
No que tange ao ano de publicação percebe-se que existem textos publicados desde 2001 (Freitas, 2001), mas a maior parte aparece entre os anos 2011 e 2014. Isso pode revelar aumento de interesse pelo tema por parte dos pesquisadores, em consonância com o aumento de casos noticiados no país ou mesmo uma maior procura dos periódicos dessa base para divulgação das pesquisas.
Em relação à veiculação, os textos são publicados mais frequentemente em periódicos da área da saúde (dezenove artigos), mais especificamente na Saúde Ocupacional, Saúde Pública, Enfermagem e Psicologia. Uma menor parte dos artigos - sete - aparece em revistas de Administração e também periódicos multidisciplinares (dois artigos). O periódico que se destaca no levantamento é a “Revista de Saúde Ocupacional”, com 28% de publicações sobre o tema.
Quando observamos a abordagem teórica, percebemos que a maior parte dos textos se atém a aspectos individuais, trazendo os impactos do assédio moral no trabalho para a saúde dos trabalhadores (Silva, Oliveira & Zambroni-de-Souza, 2008; Freire, 2011) outros) ou ficam restritos à abordagem organizacional (Martiningo Filho & Siqueira, 2008) . Embora em muitos textos haja referência à complexidade do fenômeno e a aspectos sociais, não se percebe que enfrentam a tarefa de aproximar essas diferentes dimensões (individual, institucional e social).
Em relação à caracterização, o assédio moral no trabalho, esteve sempre associado às relações de poder; podendo ocorrer de modo horizontal ou vertical (e este pode ainda ser descendente ou ascendente). Destacamos aqui as definições mais comuns nos artigos: a de Brodsky, Leymann e Hirigoyen. Para o primeiro autor, o assédio moral no trabalho corresponderia a “tentativas repetidas e obstinadas de uma pessoa para atormentar, quebrar a resistência do outro. É um tratamento que, com persistência, provoca, pressiona, amedronta, intimida outra pessoa”. Esta teria sido a primeira tentativa de definição do fenômeno, em 1976. Leymann, por sua vez, considera o assédio moral “uma sucessão de proposições e gestos hostis, que com a repetição provoca efeitos perniciosos”. E para Hirigoyen, o assédio seria “toda conduta abusiva que se manifesta por comportamentos, palavras, atos, gestos e escritos que podem atingir a personalidade, a dignidade ou a integridade física ou psíquica de uma pessoa, colocar em perigo o trabalho desta pessoa ou degradar o clima de trabalho”. Vale ressaltar, no entanto, que, mesmo quando esses autores não são citados, o assédio moral no trabalho é referido nos textos como um tipo de violência psicológica que pode ser exercida de diversas formas. Algumas dessas formas: a desqualificação do outro, o constrangimento, a indução ao erro, o isolamento, a recusa para a comunicação direta, o assédio sexual, entre outras.
Além disso, o assédio moral no trabalho se revela com algo dinâmico, que se desenvolve através do tempo. Para alguns autores a frequência e a duração da violência importam para caracterizar o assédio. Para outros, isso não tem tanta relevância. Neste caso, o argumento costuma ser que alguns eventos isolados podem ser caracterizados como assédio moral no trabalho, mesmo que não sejam frequentes. Nesta situação estariam os trabalhadores vítimas de rumores ou os que são colocados em salas isoladas, por exemplo.
É possível observar também no material revisado, que alguns textos fazem referência a grupos específicos como vítimas: homossexuais (Carrieri; Aguiar & Diniz, 2013), profissionais de saúde (Xavier et al, 2008; Fontes & Carvalho, 2012; Fontes et al, 2013), estudantes trabalhadores (Jacoby & Monteiro, 2014), homens e mulheres (Meurer & Strey, 2012), servidores públicos (Câmara; Maciel; Gonçalves, 2012), trabalhadores com LER/DORT (Silva &Oliveira, 2011).
Do conjunto de textos, vale um destaque especial para o artigo intitulado “
Do assédio moral à violência interpessoal: relatos sobre uma empresa júnior” (Pinto & Paula, 2013), onde se estuda o fenômeno a partir de um grupo de estudantes que desenvolvem atividades em uma empresa júnior, na área de Administração e Economia, em uma grande universidade brasileira. O destaque aqui se justifica em função do grupo pesquisado ser composto apenas por estudantes, que, buscando “treinamento para o mercado”, vivem de modo precoce - e intenso - as agruras da competitividade capitalista. E, no limite, a violência interpessoal e o assédio moral no trabalho. Mesmo antes de serem trabalhadores.
Considerações finais
Em conclusão, avaliamos que, embora diversificada e em crescimento, a maioria da produção bibliográfica veiculada na base Scielo, não inclui uma articulação teórica efetiva entre os aspectos individuais, institucionais e sociais relacionados ao assédio moral no trabalho. Este diagnóstico revela uma importante limitação para a abordagem do tema, já que, em nossa avaliação, o fenômeno exige essa articulação. Além disso, porque oferece aos jovens universitários - leitores assíduos dessa base - uma visão restrita e parcial do fenômeno.
Dito de outra maneira, para pensar as relações entre assédio moral no trabalho e a sociedade capitalista, se faz necessário olhar, com lente de aumento, como esse modo de produção vem formatando determinadas práticas gerenciais. E a partir disso, identificar as suas consequências para os trabalhadores. Não temos dúvida de que o assédio moral no trabalho é desdobramento de tudo isso. Portanto, a análise do fenômeno não pode ser reduzida a qualquer desses níveis (individual, institucional ou socioeconômico). É fundamental que os resultados da maioria das pesquisas - com foco nos níveis individual e organizacional/institucional - sejam tomados como resultado da organização atual do capitalismo.
Por último, mas não menos importante, novas pesquisas, brasileiras e latino-americanas, sobre assédio moral no trabalho devem ser veiculadas nos periódicos desta base (Scielo) e isso se faz urgente. Esta urgência se justifica, por um lado, pela popularidade dessa base junto aos estudantes de graduação, com já mencionado, e, por outro, em função de seu grande potencial de disseminação de ideias (acesso aberto). Salvo melhor juízo, trata-se de um espaço importante a ocupar.
Referências Bibliográficas
Antunes, R, Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
-, Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
-, Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil. En: Ideias, Campinas, 9(2)/10( 1): 13-24, 2002-2003.
Parker, AL ; Meneghini, R. “O SciELO aos 15 anos: raison d'être, avanços e desafios para o futuro”. In: Parker, AL et al. (orgs).
SciELO - 15 Anos de Acesso Aberto [livro eletrônico]: um estudo analítico sobre Acesso Aberto e comunicação científica. Paris: UNESCO, 2014. Disponível em
http://scielo.org/php/level.php?lang=pt&component=56&item=61 Acessado em 10-4-2015.
[1] “A criação do SciELO há 15 anos e seu desenvolvimento posterior foram guiados por duas abordagens pioneiras e inovadoras: em primeiro lugar, a indexação de periódicos nacionais de qualidade para complementar os índices internacionais e a publicação de textos completos de acesso aberto, na Internet, na modalidade conhecida atualmente como "Via Dourada" (Golden Road), surgida por volta de quatro anos antes do lançamento da Declaração de Budapeste, que é reconhecida internacionalmente como o início do movimento de Acesso Aberto; em segundo lugar, a convergência cooperativa de editoras independentes, editores e agências nacionais de pesquisa acerca do objetivo comum de aumentar a qualidade e visibilidade dos periódicos.”(Parker
& Meneghini, 2014)
“O problema, que atinge pelo menos 40% dos brasileiros, é uma das modalidades que mais geram denúncias no Ministério Público do Trabalho. Somente no ano passado, foram registrados em todo o país mais de 3600 casos de assédio moral [...] “O aumento de denúncias pode estar associado à busca desenfreada pelo incremento de produtividade nas empresas, que resulta no estabelecimento de metas inalcançáveis e estimula a competitividade entre funcionários”, explica o advogado trabalhista e consultor jurídico do Sindhosba, Jorge Freitas.” (grifo nosso) (Cf http://www.nossametropole.com.br/assedio-moral-dentro-das-empresas-cresceu-7-em-todo-o-pais/#.VTJcMyFViko)