I.
Em 1981, Florestan escreveu o ensaio “Reflexões sobre as revoluções interrompidas”
[2] no qual imprimiu toda sua verve crítica para analisar a situação miserável que o Brasil herdava das duas décadas de ditadura civil-militar. Reproduzo alguns trechos deste ensaio para ilustrar a gravidade do problema.
A ilusão do made in Brazil, as inconsequências e as extravagâncias do consumismo, a corrupção moral e mental da pessoa, a interiorização plena do agente dominador, de seus interesses desumanos, de suas corporações, mercados e poder etc. – voltamos ou não à conquista, só que agora de forma muito mais assustadora e dissolvente?
Àquela altura dos fatos, o nosso autor tinha já plena consciência de que a perspectiva desenvolvimentista para o atraso brasileiro, cujo modelo se praticava por aqui desde os anos de 1970, não poderia – como jamais pode – oferecer qualquer positividade para os rumos futuros da classe trabalhadora. Um plano poderoso e internacionalista de interações transnacionais, financeirização total da economia, exigido por organismos multilaterais – Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional –, penetrava o âmago da sociedade brasileira. A primeira providência foi atuar sobre um setor cronicamente atrasado – a agricultura, foco permanente de conflitos em todo o território nacional -, impondo-lhe um novo e agressivo padrão de produção tecnológico. O que interessa, de fato, é que a chamada Revolução Verde deu impulso a um violento processo de expropriação de milhares de famílias camponesas, indígenas, de trabalhadores rurais de suas terras e suas formas tradicionais de vida.
[3] Transformou-os em proletários precários – com baixos salários e desprovidos de direitos
[4] - para prover a demanda de força de trabalho no campo e nas indústrias urbanas também em ascensão. O Brasil adentrava o mundo do Imperialismo Total, de onde
(...) o desenvolvimento capitalista associado e dependente criou o seu próprio padrão de articulação política aos níveis continental e mundial: a capacidade adquirida pela dominação externa imperialista de deprimir e distorcer a ordem política tornou-se única, permitindo às nações capitalistas hegemônicas e à sua superpotência, graças a e através de vários tipos de instituições (além da diplomacia), maximizar interesses econômicos ou objetivos políticos e militares, bem como controlar à distância um amplo processo de modernização acelerada.
[5]
A proletarização mais plena do Brasil não conheceu, portanto, as condições mais favoráveis da “articulação social predominantemente produtiva do capital da época de Marx”. Ela é contemporânea da crise estrutural do sistema de metabolismo social do capital que avança como causa sui e sem que qualquer necessidade humana interfira em sua dinâmica permanente de expansão e acumulação. Segundo István Mészáros, o momento atinge
(...) um estágio em que a
disjunção radical entre produção genuína e auto-reprodução do capital não é mais uma remota possibilidade, mas uma realidade cruel com as mais devastadoras implicações para o futuro. Ou seja, as barreiras para a produção capitalistas são, hoje, suplantadas pelo próprio capital de formas que asseguram inevitavelmente sua própria reprodução –em extensão já grande e em constante crescimento – como auto-reprodução destrutiva, em oposição antagônica à
produção genuína”
[6] (...) Quanto mais o sistema destrava os poderes da produtividade, mais ele libera poderes de destruição; e quanto mais dilata o volume da produção tanto mais tem de sepultar tudo sob montanhas de lixo asfixiante.
[7]
Frente ao quadro em que apenas se iniciava aquele padrão de dominação incorrigivelmente nefasto do capital sobre o trabalho, pautado numa lei do valor muito mais “flexível”, Florestan não se ilude com as promessas da abertura política, pois compreendia que, se durante os anos sombrios do regime militar, o forte aparato de repressão impedia a manifestação das massas pela força, garantindo desse modo a modernização conservadora do país, a transição democrática necessitava de novas e ainda mais poderosas formas de controle sobre elas, já que a intensificação daquele modelo de desenvolvimento destrutivo lhes reservava adversidades ainda mais problemáticas e mais complexas a serem enfrentadas.
Tanto internamente, quanto a partir de fora, o palco está preparado para compatibilizar o crescimento morfológico dos proletários como classe em si com uma consciência de classe “esterilizada” e com dinamismos de “luta de classes” destituídos de elemento político e de um eixo verdadeiramente revolucionário.
[8]
Caso raro na cena brasileira recente, invadida por uma corrosiva onda de relativismos teóricos que se fundam no esgotamento do trabalho como produtor do valor, do trabalho como ponto de identificação social dos sujeitos históricos, o compromisso ético de Florestan se estabelecia por inteiro com a construção e as necessidades da revolução proletária num país de capitalismo dependente e subalterno ao capital central. Por isso, não poupou nenhum dos segmentos empenhados na missão de domesticar e “incluir” os ímpetos da classe. Nem o socialismo reformista, com suas táticas de apoio e aliança com a burguesia nacional; nem os sindicatos “modernos” e “democráticos”, influenciados pelo modelo norte-americano; nem os “partidos operários social-democratizados” e demais movimentos de massas que capitulam na linha de menor resistência. Foi particularmente duro com “os intelectuais e as universidades (que) permanecem cegos diante desse processo, pelo qual eles próprios estão sendo internacionalizados, ‘cooptados’ e destruídos pela alienação.”
Ainda não se podia antever a magnitude dos golpes que a classe trabalhadora e toda população vulnerável do campo e das cidades haveria de sofrer dos sucessivos governos neoliberais, independentemente da forma que tomaram com Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva ou Dilma Rousseff. Todos, cada um ao seu tempo e ao seu modo, sempre sob comando externo, tiveram uma funcionalidade necessária ao aprofundamento da crise estrutural do capital por aqui. Sobre a questão, é a Mészáros que ainda recorro para compreender a relação visceral do Estado com a ordem socioeconômica.
Na época de Mandeville, a grande preocupação, no que se referia ao papel do Estado, (...) era usar seu poder no interior do país, de modo que a ‘propriedade fosse assegurada’ e que ‘o pobre fosse estritamente posto a trabalhar’; internacionalmente, a intenção era sustentar as forças do capital em seu empreendimento de expansão colonial, no interesse da riqueza crescente das ‘grandes nações ativas’. Hoje a situação é radicalmente diferente. Não com relação aos objetivos de ‘garantir a propriedade’ e ‘pôr o pobre estritamente a trabalhar’: enquanto sobreviverem o modo de produção capitalista e seu Estado, eles têm de permanecer com os propósitos permanentes do sistema. A diferença radical é visível no fato de que o Estado capitalista precisa agora assumir um papel intervencionista direto em
todos os planos da vida social em escala monumental. Sem esta
intervenção direta no processo sócio-metabólico, que age não mais apenas em situações de emergência, mas em
base contínua, torna-se impossível manter em funcionamento a extrema perdularidade do sistema capitalista contemporâneo.
[9]
Tendo em vista a marcha acelerada do progresso destrutivo no Brasil dos anos de 1970, no começo dos 80 já era possível vislumbrar a degradação potencial que seria imposta à maior parte da sociedade brasileira. Por isso mesmo Florestan se preocupava com o
deserto ideológico que se articulava contra ela: “o que dizer da barbárie que daí poderá resultar se as populações pobres e as classes trabalhadoras não estiverem armadas para lutar por si próprias e pela HUMANIDADE de exploradores e explorados?”
[10]
As passagens acima ajudam a compreender a situação que vivemos hoje no Brasil, situação ainda mais miserável do que a encontrada por Florestan em 1981, pois cumpriu-se o que ele temeu. O espectro da barbárie se personificou plenamente no país e frente a isso não se vislumbra um projeto emancipatório sequer, nenhuma saída mais radical ao capital, capaz de mobilizar as massas. Aqui reside a razão real da crise brasileira, a crise de uma classe sem direitos, sem alma, sem futuro. O PT, como condutor político do moinho satânico, teve participação decisiva na sua ruína.
II.
Por mais de uma década, os governos petistas jactaram-se de alçar a população mais pobre do Brasil à categoria de uma “nova classe média”. Cumpriram, dessa forma, as promessas de sucessivas campanhas eleitorais à presidência da república em que, afastando-se das tendências mais combativas das bases operárias e populares de suas origens, passaram a mirar os anseios difusos daquele segmento social.
À frente da administração do Estado, o PT vai encontrar os setores populares desgastados, empobrecidos e fragilizados pelos ataques sofridos das políticas aplicadas em governos anteriores, sobretudo de FHC. Por isso também foi tão grande a expectativa depositada na nova gestão.
As urgências da pobreza deram ensejo ao prestígio que consolidou nos resultados imediatos obtidos das políticas socioeconômicas que seguiram à risca o receituário do Banco Mundial. Verificou-se aumento da renda da população, diminuição da taxa de desemprego, expansão do consumo em função do crédito barato. Sem qualquer intenção de recompor os direitos subtraídos à classe, de reverter o quadro das desregulamentações que a atingiram, promoveu-se a tal “inclusão social” mediante programas modelares e contingentes como o Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida. A educação ganhava contornos mais amplos e também pragmáticos com o Prouni (Programa Universidade para Todos), o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil), o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) e o programa de cotas para estudantes negros e pobres. A reforma agrária saía de cena em função de programas de incentivo à agricultura familiar (Pronaf) e da produção de agroecológicos. Avolumaram-se significativamente os gastos públicos a fim de viabilizar o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)
[11] que, com o aporte do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento), financiou obras gigantescas por todo o território nacional, tais como hidrelétricas - entre as mais polêmicas estão Belo Monte e Jirau -, ferrovias e complexos portuários para o escoamento interno e externo da produção de commodities. Edificaram-se complexos petrolíferos voltados à exploração do pré-sal e, ainda, pesada infraestrutura necessária à realização de megaeventos como a Copa da Fifa de 2014 as Olimpíadas de 2016. Por muito tempo, um mesmo e viciado grupo de empreiteiras vinha obtendo a prevalência nos financiamentos públicos.
Entre 2002 e 2010, o Brasil registrou uma elevação de 146% no preço médio (em dólares) das exportações, enquanto as importações cresceram 85% no mesmo período. A receita, no ritmo dos demais países-membro do BRICS, subia 7% ao ano. Tais fatores estimularam a compra de produtos industrializados da China, principalmente, com quem o Brasil estreitou acordos comerciais desde quando aquele país, em curva ascendente, se tornou o mais importante comprador da soja e do ferro brasileiros. Como dizem alguns: um “maná que veio do céu”.
A bonança dependente das exportações de commodities e da lógica creditícia criou a sensação de que todas aquelas positividades seriam definitivas. O otimismo governista fez acreditar que “todos” ganhavam e que, com suas bases de apoio e sua forte aliança com setores da burguesia nacional, seria capaz de controlar internamente os abalos da crise internacional que, desde 2008, vem ensaiando um colapso generalizado.
Concretamente, o alardeado neodesenvolvimentismo petista que saiu na defesa da indústria nacional fracassou em suas intenções ao adotar uma política de consumo muito superior ao que a indústria doméstica poderia atender. O resultado foi uma brutal desindustrialização comprovada pelos números: em 2010, a indústria correspondia a 15% do PIB, enquanto que, em 2014, caiu para 11%.
E, coerentemente com o modelo de desenvolvimento inaugurado nos anos de 1970, os programas de crescimento dos anos 2000 continuaram ampliando enormemente o poder do capital financeiro, do agronegócio, da mineração, do setor energético e da construção civil. Fortaleceu-se a monocultura, a produção de commodities e de bens manufaturados para exportação. A ampliação e fortalecimento da Revolução Verde confirma o velho modelo agrícola, baseado na grande unidade produtora e forte impacto ambiental, racionalizado mediante larga utilização de tecnologias baseadas em máquinas, em sementes transgênicas auto-reprodutivas, no consumo campeão de insumos químicos e de veneno (um bilhão de litros por ano). Sob o controle das grandes transnacionais do setor, o modelo hegemonizado pela commoditização domina o país gerindo e beneficiando-se do desmonte da mal sedimentada indústria de bens de produção, da reestruturação produtiva, do desemprego estrutural, do enfraquecimento das entidades sindicais e movimentos sociais expressivos, da incidência generalizada do trabalho informalizado, precarizado, escravizado, da superexploração do trabalho infantil e feminino.
O PT zela pelas necessidades do capital destrutivo, ampliando a tragédia da classe trabalhadora brasileira. O deserto ideológico com que se preocupou Florestan foi preenchido pelo abstrato conceito de cidadania e por uma ampla gama de planos, projetos e programas de redução da miséria. Sem dúvida alguma, a obra mais importante do PT se encontra no manejo magistral com que operou sua relação com as massas, com os setores populares, organizados ou não.
[12] Trouxe-os para as hostes do Estado, institucionalizou-os, tutelou-os, controlou sua miséria, converteu-a em virtude. Calou sua voz combativa, tornou-os dependentes de políticas e de burocracias estatais. Os companheiros dos sindicatos, partidos e movimentos sociais são os novos parceiros; os trabalhadores se tornaram colaboradores e empreendedores fustigados pelo fetichismo da mercadoria (chinesa) e invadidos da lógica do inimigo. Sobretudo, afastaram-se da incômoda e perigosa consciência de classe.
No comando do Estado, o petismo constitui um importante vetor político da miséria brasileira. E, se os militares usaram a força bruta para calar as forças insurgentes contra o capital, o PT no poder as silencia pela ilusão da ascensão social – a classe média cidadã -, e o valor ideológico que atribui ao seu empobrecimento em amplo espectro. Assim, como um conhecido político brasileiro proferiu a pérola “bandido bom é bandido morto”, o PT sentenciou que pobre bom é pobre “ordeiro”.
III.
Em junho de 2013, vivemos um fenômeno semelhante ao ocorrido na Primavera Árabe (2010), quando milhões de brasileiros foram às ruas romper com o mito do crescimento tranquilo e as bravatas da ordem consentida. Explodia ali a retomada de uma grande onda rebelde, de revoltas populares mais ou menos conscientes. Desde então, o país vive um ascenso de lutas, uma multiplicidade desconcertante de enfrentamentos, reativos em sua maioria e muito distintos do que se poderia esperar de uma organização social em tempos mais favoráveis. A atualidade é pontuada por ativismos fragmentados, contingentes e, em não poucos casos, espontâneos e ideologicamente confusos. Ainda assim ressurgem como manifestações de libertação da clausura que representou o estranhamento ideológico que lhes foi imposto durante mais de 10 anos.
A ousadia das massas indicava que a história poderia sair do controle, daquela zona de conforto na qual se estabelecera a política de consenso do lulismo. Por isso, a parte mais inconformada dos manifestantes vem sendo duramente reprimida e criminalizada pela violência policial.
[13] A outra parte, convencida pela doutrinação pequeno-burguesa, engrossa o campo da moral e dos bons costumes, vocifera contra a corrupção. Desde ali, um clima de cisões e de instabilidades generalizadas é orquestrado pelas delinquências da mídia que desinforma e deforma, pelo reacionarismo do congresso que pisa na constituição, pelos golpismos da base aliada do governo e de seus opositores. Uma vaga fascistizante convoca a todo instante que se pratique a Lei de Linch contra pobres, negros, índios, homossexuais. Grupos de extermínio atuam com ferocidade nas periferias. Os noticiários montam e remontam crônicas de uma crise sem passado, passageira. O problema se reduz aos indivíduos e às siglas que ora ocupam a gerência do Estado. A mera troca deles sanearia o ambiente e a normalidade seria reconduzida ao país.
[14]
Uma análise mais precisa, porém, mostra que os problemas que nos atingem são mais antigos, muito maiores e mais graves do que as possibilidades internas teriam de controlá-los. Primeiro porque possuem singularidades históricas estruturais e segundo porque essas singularidades estão mais do que nunca sintonizadas à crise estrutural do sistema. Urge recompor, em novas bases, a nossa função endêmica que, desde as medidas anticíclicas do keynesianismo, se presta a absorver as contradições mais agudas do sistema. O agravante do padrão global de crescimento em curso desde os anos de 1970 é a dificuldade crescente de se manter, em níveis aceitáveis, as taxas de lucro. Daí o fosso impressionante que se vem cavando entre a riqueza concentrada nas mãos de 1% e a miséria potencial destinada a 99% da população mundial. Para atender a essa irracionalidade se torna imprescindível derrubar todos os limites que impedem a exploração do sobretrabalho e dos recursos naturais necessários à lógica da produção destrutiva.
Neste cenário, os truques do lulismo são inúteis para conter os ânimos. Para melhor exercer seu papel histórico e atender os apelos do sistema, o momento requer que adotemos formas de governabilidade absolutamente indiferentes às expectativas dos trabalhadores e das populações vulneráveis. Para o capital, momento é de ruptura com eles e não de consensos. Ironicamente, o próprio PT toma distância estratégica do lulismo para melhor conduzir a transição para o abismo.
Dilma, refém do seu próprio ministério – com o banqueiro Joaquim Levy à frente –, se empenha em fazer a sua parte para salvar o capital. Em curso, o maior ajuste fiscal da história do país que, em termos nominais, reorienta o montante de R$ 70 bilhões, antes destinados a áreas essenciais, para o pagamento de juros da dívida pública. Medidas Provisórias de toda ordem afetam diretamente o mundo do trabalho, entre as quais se destacam as MPs 664 e 665, que dificultam e diminuem a possibilidade de obtenção de seguro desemprego e aposentadoria; o Projeto de Lei 4330, que permite a terceirização da atividade principal da empresa; a mudança no caráter dos investimentos dos fundos de pensão, liberando aplicação de recursos para especulação financeira; a MP 680, também conhecida como Programa de Proteção ao Emprego (PPE), que permite diminuir a jornada de trabalho e o salário em até 30% e muda o pagamento dos abonos salariais do PIS/PASEP.
Outras tantas propostas terão impacto avassalador em vários setores da sociedade brasileira como aquela que menciona o fim da união aduaneira com o Mercosul e a abertura comercial com os EUA; a Proposta de Emenda à Constituição, PEC 171, que reduz de 18 para 16 anos a idade penal para crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte; a PEC 215 que confere ao Congresso Nacional a competência exclusiva da aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e revisão das demarcações já homologadas.
Projetos de Lei que incidem diretamente sobre a liberdade dos indivíduos, como PL 867, que impede que o professor aborde questões políticas em sala de aula; sobre a soberania nacional, como PL 131, que tramita em regime de urgência no senado e visa transferir para multinacionais os lucros com a exploração dos recursos do pré-sal; sobre desregulamentações com forte impacto social, como a PL 5807, que define um novo marco regulatório para o setor de mineração no Brasil abrindo territórios das comunidades tradicionais para a exploração extrativa; sobre impactos educacionais, como o Plano “Brasil Pátria Educadora” que destina grande parte dos recursos públicos da educação para instituições privadas; sobre o recrudescimento da repressão como o PL 2016, que caracteriza como terroristas as manifestações políticas equiparando-as ao uso de explosivos nucleares.
O senado, através de Renan Calheiros, apresentou como proposta todo um plano de ação para “solucionar a crise”, chamado Agenda Brasil. Nela se prevê 1) a proteção legal para investimento privado em concessões e privatizações na forma de Parcerias Público Privadas (PPP), através do desmonte das agências que põem limites aos impactos ambientais e sociais, flexibilizando as leis trabalhistas, desregulamentando a atividade extrativa, a proteção ambiental e do patrimônio histórico e retrocedendo na demarcação das terras indígenas, bem como estimulando megaeventos em detrimento do bem público e relativizando os estudos de impactos sociais e ambientais nas obras de infraestrutura; 2) a busca de equilíbrio fiscal por meio da redução de impostos sobre o patrimônio e aumento de impostos sobre a renda, da desvinculação de receitas orçamentárias em áreas essenciais, privatização de patrimônio público, caracterização do investimento das estatais como gasto público, impossibilidade de ajuste salarial para os servidores públicos; 3) o desmonte da proteção social que acaba com o princípio da gratuidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e realoca os investimentos em educação para o pagamento da dívida pública; 4) a isenção de impostos para as empresas, desoneração delas pela redução da folha de pagamento e acesso a fontes de financiamento público.
Obviamente não teremos a oportunidade de analisar aqui o peso de cada um desses pontos, mas podemos imaginar que se essas medidas todas forem aplicadas, e tudo indica que sim, o Brasil viverá a maior tragédia social, ambiental e humana de sua história. Algo, possivelmente, semelhante à tragédia dos refugiados da África e do Oriente Médio. Diante de um tal futuro, é muito importante a continuidade e a intensificação das lutas tanto pela recuperação dos direitos suprimidos como contra as medidas que visam outras supressões. Mas é ainda mais urgente uma luta que não caia nas armadilhas politicistas, nas saídas economistas e nos pactos que invariavelmente desaguam na linha de melhor resistência. O grande desafio da atualidade é conseguir recuperar a consciência que a democracia do consenso roubou das massas; desafiar as misérias materiais e ideológicas e reassumir, através da luta, a condição de sujeito da história. Um primeiro passo poderia ser dado pelas organizações – ou o que sobrou delas – no sentido de romperem com as arengas da retomada do crescimento e de compreenderem, definitivamente, que não há fim da crise para a classe trabalhadora e para os povos atingidos pelo capital. Que o agir revolucionário precisa se recriar sem o canto de sereia das instituições mediadoras da ordem.
Tudo está perdido, a menos que ...
Frantz Fanon. Os condenados da terra.
Esse artigo, que contou com a colaboração inestimável do Coletivo Canudos, de Araraquara, dá continuidade ao anterior, “O ocaso de um projeto enganador”, publicado em Herramienta nº 56.
[2] In.
Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. (p. 111)
[3] Esse processo que, a bem da verdade, acontece ainda durante a colonização portuguesa, se renova e se intensifica a cada salto modernizador no país, ainda em nossos dias. Exemplo disso é o massacre, articulado por fazendeiros, contra indígenas em luta pela autodemarcação de terras.
[4] Muitos deles foram escravizados e mantidos em campos de concentração para trabalhar nas agroindústrias criadas no período.
[5] Florestan Fernandes. “Notas sobre o fascismo na América Latina”. In.
Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. (p. 26)
[6] István Mészáros. “A taxa de utilização decrescente e o Estado capitalista”, capítulo 16, In.
Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002 (p. 699).
[7] István Mészáros. “A necessidade do controle social”, capítulo 21, In.
Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002 (p. 1010).
[8] Florestan Fernandes, idem (p. 110).
[9] István Mészáros. “A taxa de utilização decrescente e o Estado capitalista”, capítulo 16. In.
Para além do capital. P. 700.
[10] Florestan Fernandes, idem, p. 111.
[11] “Anunciado como uma guinada na política econômica, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi recebido por muitos – à esquerda e à direita – como uma negação da herança neoliberal e a volta do papel regulador do Estado na economia. Nada mais longe da realidade. As medidas anunciadas são apenas um pouco mais do mesmo. Seus fins e seus meios enquadram-se perfeitamente nos parâmetros do padrão de acumulação neoliberal-periférico, implantado por Collor de Mello, consolidado por FHC e reciclado e re-legitimado por Lula da Silva. Apresentada como tábua de salvação que lograria finalmente concretizar o prometido ‘espetáculo do crescimento’, a estratégia de aceleração do crescimento organiza-se em função de dois objetivos primordiais: enfrentar o estrangulamento na infraestrutura econômica nas áreas de energia, transporte e portos; e incentivar a iniciativa privada a sair da especulação financeira e realizar investimentos produtivos.” Plínio de Arruda Sampaio Jr. “Notas sobre o PAC – um passo atrás” (htpp://www.corecon-rj.org/artigo_plinio_seminario_pac.pdf).
[12] A criação do Cadastro Único vem sendo um excelente instrumento de controle e mapeamento dos passos dos indivíduos pobres.
[13] A proposta de uma lei antiterror surge exatamente neste momento.
[14] Desenha-se um quadro de acusações contra os erros de condução econômica e contra a decadência moral e política da governabilidade petista. Daí a articulação de um processo de impeachment contra a presidente Dilma. Sem entrar no mérito das peças condenatórias que, desde o Mensalão
[14] até a Operação Lava-Jato
[14], derrubam uma a uma das principais lideranças históricas do PT, levando consigo, definitivamente, o que um dia foi o farol da esquerda latino-americana, importa compreender as razões que ora levam as burguesias – fortemente transnacionalizadas - a defenestrar o partido que, desde 2003 à frente do Estado brasileiro, tantos e tão bons serviços lhes prestou.