26/04/2024

A dialética violenta do esclarecimento – notas a partir de Adorno & Horkheimer

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A dialética violenta do esclarecimento – notas a partir de Adorno & Horkheimer

Jessica Di Chiara (Universidade Federal Fluminense)
jessica.dichiara@gmail.com
Se por esclarecimento e progresso intelectual referimo-nos a libertar o homem da crença supersticiosa em forças maléficas, em demônios e fadas, no destino cego – em suma, se nos referimos à emancipação do medo –, então a denúncia do que hoje é chamado razão é o maior serviço que a razão pode prestar.
Max Horkheimer
O conceito de esclarecimento, primeiro dos três estudos do livro A Dialética do Esclarecimento (1947), de Adorno & Horkheimer, tem como objetivo elucidar a forma da racionalidade que tem caracterizado o desenvolvimento da civilização ocidental. Racionalidade esta que, ao invés de prover ao gênero humano, humanidade, afundou-o numa nova espécie de barbárie. Tendo o livro três questões contextuais – o nazismo, o stalinismo e o capitalismo norte-americano – “O conceito de esclarecimento” traz como tema o fato de o projeto de esclarecimento, ao invés de livrar o homem do medo ao investi-lo na posição de senhor de seu próprio destino, gerou a maior calamidade de que se teve notícia: o holocausto. Da afirmação de que esse projeto, cujo mote era o progresso rumo à paz (e à liberdade e à felicidade...) pelo emprego da técnica para a dominação da natureza é, na verdade, um projeto de barbárie que culminou no extermínio administrado de milhões de seres humanos, Adorno & Horkheimer situarão essa discussão a partir do que seria inerente ao próprio projeto civilizatório, o “desencantamento do mundo”.
Como nos dizem os próprios autores, o texto “(...) pode ser reduzido em sua parte crítica a duas teses: o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”(Adorno e Horkheimer, 1947: 15). A partir das reflexões contidas no capítulo de abertura do livro, este trabalho pretende, então, retomar a tese de que a afirmação do homem frente à natureza parte de um princípio de violência do pensamento e, conseqüentemente, da sua materialização na prática que se transformará numa violência muito específica na sociedade administrada: a do homem sobre o próprio homem. Sob o ponto de vista dialético, “O conceito de esclarecimento” faz uma genealogia da racionalidade para mostrar a situação do tempo presente, em que o homem se vê subordinado a um sistema fechado e violento chamado "mundo administrado"
Origem mitológica da dominação na Dialética do Esclarecimento
Pensando hipoteticamente nos primórdios da humanidade, na pré-história do homem, existiria um momento em que passaríamos a nos perceber como uma entidade fora da natureza. Nessa pré-história, o homem veria a natureza como uma força incontrolável e exterior a si, e essa natureza externa, ele a temeria pelos riscos à sua existência enquanto indivíduo e espécie, por estar subordinado fisiologicamente a ela. Para Freud[1], esta tomada de consciência de si em contraposição a uma natureza que passa a ser um outro caracterizaria o início da civilização, e seria justamente o pavor frente a este mundo externo que pode voltar-se contra a autoconservação do homem com forças de destruição esmagadoras e impiedosas[2] que iria gerar como resposta o recurso ao mito. A partir do momento em que o homem se vê mais fraco que a natureza, esse medo ancestral, por um lado, gera uma nostalgia por uma harmonia perdida, pertinente a um estágio de indissociação do homem com a natureza – e o mito tem a ver com os procedimentos de se criar semelhanças com a natureza; o procedimento mimético é justamente a imitação de suas formas.[3] Contudo, por sua vez, a “perda da inocência” parece ser uma via de mão única: após a constituição consciente do homem como segunda natureza apartada da natureza “outra”, o recurso mimético já é reflexivo (esclarecido) e tem em vista um objetivo muito particular: dominar a natureza externa com fins a autoconservação. Este medo ancestral do homem diante das ameaçadoras forças naturais parece ser a marca do desenvolvimento da civilização ocidental, cujo programa – o “desencantamento do mundo” – se corporificou no conceito moderno de técnica. Nisso reside o aspecto essencialmente repressivo do esclarecimento, pois “só o pensamento que faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos.” (Idem: 18)
Mito, esclarecimento e desencantamento do mundo
O desencantamento do mundo seria a tentativa de inverter essa dominação para controlar a natureza e, de alguma maneira, se tornar mais forte do que ela. E aí, como nós, modernos, entendemos o mito? Como uma forma de tentar entender e explicar o mundo a partir do animismo, pensando a natureza como composta de demônios e fadas e deuses, etc, ou seja, forças maléficas e potentes, e com magias e rituais lidar com essas forças. E o esclarecimento, ao romper com isso, nos fornece ferramentas [técnicas] para entender o mundo de outra forma que tem a ver justamente com o desencantamento do mundo. Ao invés de rituais e magias para evitar tempestades e secas, nós inventamos a meteorologia, etc. 
Pois bem, se no registro do mito havia uma dominação da natureza sobre o homem, o projeto do esclarecimento era transformar a dominação da natureza não mais sobre, porém pelo homem. Contudo, esse objetivo de dominar a natureza que teria a expectativa de uma emancipação de suas forças levará não a uma situação de liberdade, mas perverter-se-á numa outra forma de dominação no mundo administrado: dominação do homem pelo próprio homem.
Se no contexto do século XVIII o termo esclarecimento (Aufklärung) foi utilizado na Alemanha para falar, em virtude do fenômeno político-cultural francês (Lumières), de um processo de emancipação intelectual – a célebre passagem da menoridade para a maioridade, em Kant, como resultado da superação da preguiça de se pensar por conta própria, por um lado, e da crítica aos ditos “superiores intelectualmente”, os tutores, que desencorajam o uso próprio da razão, por outro – em Adorno e Horkheimer o termo é utilizado para falar, como dito anteriormente, do processo de "desencantamento do mundo" e racionalização, cujo fundamento seria justamente a noção de dominação (da natureza pelo homem). Para Guido de Almeida, como podemos ver em sua nota do tradutor para a edição brasileira:
o esclarecimento de que falam não é, como o iluminismo, ou a ilustração, um movimento filosófico ou uma época histórica determinados, mas o processo pelo qual, ao longo da história, os homens se libertam das potências míticas da natureza, ou seja, o processo de racionalização que prossegue na filosofia e na ciência.[4]
Ao percorrer o texto, fica claro que a ambivalência dos termos utilizados põe em jogo as articulações pretendidas. Não sendo a dialética do esclarecimento restrita ao século das luzes, por sua vez, o projeto de desencantamento do mundo iniciado com a origem da civilização ocidental chega ao ápice justamente no século XVIII: a ciência e a técnica modernas são os ícones do mundo desencantado – Deus está morto, o homem é agora apartado do mundo numa posição subjetiva dotada de razão e a relação com as coisas do mundo é objetificante.
Desencantar o mundo é destruir o animismo. (...). Nenhuma distinção deve haver entre o animal totêmico, os sonhos do visionário e a Ideia absoluta. No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade.
As categorias, nas quais a filosofia ocidental determinava sua ordem natural eterna, marcavam os lugares outrora ocupados por Ocnos e Perséfone [deusa das ervas flores, frutos e perfumes], Ariadne[deusa da fertilidade? Fio de Ariadne] e Nereu [deus marinho primitivo, o velho do mar] . As cosmologias pré-socráticas fixam o instante da transição. O úmido, o indiviso, o ar, o fogo, aí citados como a matéria primordial da natureza, são apenas sedimentos racionalizados da intuição mágica. (Adorno e Horkheimer, 1947: 18-19)
Da explicação dessa origem comum entre mito e esclarecimento – pavor do homem que se descobre apartado da natureza – Adorno e Horkheimer destacam que o que o desencantamento do mundo pretende substituir é a imaginação pelo saber. Nesse sentido, a aproximação feita no texto dos mitos com o surgimento da filosofia (ou seja, com a metafísica) é ressaltada como uma característica de continuidade e permanência do mistério no mundo. Tanto a ideia platônica quanto o cristianismo e o dogmatismo ainda guardariam relações com o mundo de forma transcendente e ainda misteriosa. O salto da modernidade estaria justamente no estabelecimento do método científico, cujo procedimento pressupõe uma relação estanque e dicotômica entre o sujeito racional (controlador empírico de testes em condições “artificiais”) e o objeto do conhecimento (dado material que serve à experimentação científica). E será justamente este tipo de racionalidade “instrumental” que desembocará, após o controle técnico do homem sobre a natureza, num tipo de dominação perversa do homem pelo homem como segunda natureza.
Salto do método científico: o que é isso? É a divisão do mundo entre sujeito e objeto, onde o pensamento exerce violência não mais sobre si mesmo, mas apenas nos objetos de conhecimento. E, nesse sentido, pq o materialismo parece revolucionário então? Pq ele pressupõe retomar essa junção: como está tudo no mesmo plano (diferente dos idealistas) o pensamento volta a violentar-se também, o que o ajuda a realizar-se criticamente.
E assim, preso em uma dominação cega, é o esclarecimento que se auto-destrói ao não acolher dentro de si a reflexão sobre o elemento regressivo que também o constitui. A dialética do esclarecimento, particularmente o primeiro texto do livro, que é como que o “referencial teórico” dos estudos posteriores do livro – e, como havia dito, para mim de toda a produção posterior dos filósofos – pretende justamente, então, a partir da crítica preparar um conceito positivo de esclarecimento, libertando-o do emaranhado que o prende a uma dominação cega que é seu algoz.
Relação de dominação entre os homens a partir da razão instrumental
Essa segunda natureza se apresenta, agora, novamente fechada. Se pensarmos em termos de temporalidade, o mito e a magia diziam respeito à ideia cíclica de que tudo desaparecerá e fará parte novamente da natureza, como as estações do ano, o dia e a noite, o tempo de uma gestação. O esclarecimento tem a perspectiva de se apropriar do passado com vistas ao futuro tentando escapar, assim, da ideia mítica de destino e repetição. O problema é que o próprio processo do esclarecimento, a cada passo que dá, constrói uma nova forma de repetição, que é o sempre igual não da natureza, mas da lei, do método científico, do tempo do relógio e da máquina; uma repetição, assim, esvaziada, mortificante, calculável. Trabalhando com o mesmo princípio da natureza no mito, que é o da imanência, diferentemente do que se esperava do projeto do esclarecimento – emancipar o homem – a racionalidade instrumental cria uma nova forma de subordinação do homem a partir dessa força de homogeneização decorrente do pensamento mítico, só que pervertida na conversão da natureza, e do próprio homem, em mera objetividade.[5]
O mundo administrado seria a forma de dominação que tem a ver com esse projeto de esclarecimento que torna a sociedade do século XX permeada por sistemas totalitários que estão voltados a bloquear qualquer tipo de mudança: um mecanismo próprio que controla, domina e subordina os indivíduos, desconcertantemente diagnosticado nas três configurações político-sociais existentes à época: o nazismo, o stalinismo e o capitalismo norte-americano. E o desconcerto provocado pelo diagnóstico apresentado é a constatação de que Hitler – figura emblemática do totalitarismo moderno contemporâneo – não é o oposto do esclarecimento, mas sim a sua realização plena e, talvez, seu produto.[6] O nazismo como conversão do esclarecimento em mitologia dá mostras do entrelaçamento entre mito, esclarecimento e dominação.
Referências bibliográficas:
Almeida, Guido A, “Nota preliminar do tradutor”. En: Adorno, Theodor.; Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Trad.: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Adorno, Theodor.; Horkheimer, Max. “O conceito de Esclarecimento”. En: Dialética do Esclarecimento. Trad.: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.


[1] O mal-estar na civilização, 1930.
[2] forças que eram superiores: desastres naturais, chuva forte, vulcão, os próprios animais
[3] O que é o procedimento mimético? Seria justamente imitar as formas da natureza tentando ou se igualar à ela, cobrindo o corpo com pele animal e folhagem, etc, ou então fazer rituais e magias de apaziguamento e controle das formas naturais, como por exemplo, danças para evitar tempestades e secas, etc. E bem, um outro procedimento pertinente ao mito que é, digamos, o procedimento mimético às avessas  é o animismo, cuja função seria justamente “animar” a natureza, transformá-la em sujeito: ou seja,  enquanto o procedimento mimético daria características naturais ao homem, o animismo daria “animo” ou alma à natureza.
[4]  Almeida, G. Nota preliminar do tradutor, p. 8.
[5] “O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade.”.  (Idem:.21).

[6] “O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica.”. (Idem: 26). 

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