15/01/2025

Forças produtivas e formas do capital: da ciência como capital ao general intellect na crítica marxiana da economia política

Por

 

Antônio José Lopes Alves[1]
 
Este artigo tem por objetivo explicitar e discutir, a partir da noção marxiana de general intellect, conforme desenvolvida nos últimos cadernos dos seus Grundrisse, as principais determinações do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social como forças produtivas do capital. Como desdobramento tendencial, o fenômeno de constituição de um entendimento geral ou de cérebro social, no processo de produção capitalista, aponta para a emergência virtual de modos de interatividade que dele divergem. Não obstante engendrado no curso do aprimoramento histórico da Daseinform capital da produção, o desenvolvimento histórico abordado no texto marxiano apresenta elementos categoriais por meio dos quais é possível já divisar certo horizonte de superação do esquema valor/mais-valor. Expõe-se aqui o resultado de investigações do texto marxiano dos Grundrisse, efetivadas no contexto do Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes.
Intenta-se indicar um conjunto plausível de possibilidades e de virtualidades de emancipação humana vislumbráveis na quadra histórica atual, pela análise da referida noção em sua relação de determinação contingente com o problema concreto da necessária diminuição do tempo de desvalorização do capital (circulação/troca). Processo de revolucionamento contínuo que se dá na base da produção social e permite recolocar a questão do rompimento do círculo de ferro do capital para além de part-pris de natureza ético/moral ou utópico/político.
A elucidação deste problema remete, em primeiro lugar, à natureza mesma da forma societária do capital, daquela que dirige todos os atos produtivos dos indivíduos para a criação e reprodução da riqueza, e de, ao mesmo tempo, estranhamentos particulares. Neste sentido, a forma social do capital aparece a Marx como momento máximo de certo tipo de itinerário histórico de constituição da individuação e da sociabilidade enquanto tais, a qual traria virtualmente em seu bojo os componentes de uma nova formação societária:
 
(...) a forma extrema do estranhamento [die äußerste Form der Entfremdung], forma sob a qual, na relação do capital com o trabalho assalariado, o trabalho, a atividade produtiva, aparece ante suas próprias condições e seu produto, representa um ponto de passagem necessário – e porque esta forma, invertida, simplesmente apresenta em si a dissolução de todos os pressupostos limitados da produção, e mesmo, ao contrário, cria e produz os pressupostos indispensáveis da produção, e, portanto o conjunto de condições materiais do desenvolvimento total, universal, das forças produtivas do indivíduo).[2]
 
A sociabilidade moderna, caracterizada predominantemente pela forma extrema do estranhamento que engendra, aparece na analítica marxiana sob um duplo aspecto: 1) é o desenvolvimento mais vigoroso e pleno da atividade estranhada, com todas as consequências gravosas para o ser da individualidade (pense-se no fato de o equivalente, e o intercâmbio neste baseado, negar continuamente seu próprio fundamento efetivo: os indivíduos, suas diferenças e diferentes produções/necessidades); e 2) é o instante histórico no qual os modos limitados e entravados, de ser e produzir dos indivíduos se encontram em progressiva negação, os indivíduos e sua produção não sendo mais determinadas pelas coações, violentas ou não, da comunidade, da tradição, da unidade entre produtor e meios, etc. A forma moderna da sociabilidade, em que pese todos os problemas e misérias, aparece como momento inegavelmente superior. As misérias modernas são, acima de tudo, modernas.
            Este modo de ser e de produzir a vida surge a Marx como um conjunto de enorme contraditoriedade, onde, por exemplo, forma e conteúdo da atividade, a equivalência e a riqueza, se entrelaçam e se negam reciprocamente. Antes de tudo, a forma societária do capital, e a individualidade a ela correspondente, aparecem marxianamente portando uma tendência civilizatória, dimensão esta inexistente, mesmo nas formas clássicas da antiguidade, devido à estreita ligação destas com a naturalidade e a premência da sobrevivência imediata:
 
Esta tendência propagadora (civilizatória) pertence somente ao capital – diferentemente das condições anteriores de produção. Os modos de produção, nos quais a circulação não constitui uma condição imanente e dominante da produção não são, naturalmente, as necessidades de circulação específicas do capital e, portanto, nem a elaboração das formas econômicas bem como das forças produtivas reais que lhe correspondem[3].
 
A sociabilidade moderna é deste modo, a mais completa elaboração, até agora, das forças produtivas dos indivíduos. E isto exatamente em função de que os indivíduos confrontam os seus meios de objetivação em geral sob a forma da exterioridade. Que tal modo engendra um tipo específico de estranhamento, aquele que determina as forças sociais de objetivação como elementos estranhos, independentes, e até, hostis, aos sujeitos ativos, isto já vimos mais acima. No entanto, cabe notar igualmente que estranhamento, para Marx, não é uma forma metafísica ou unilateral de sofrimento. É ao contrário, a elaboração contraditória da vida humana. Elaboração esta que une e imbrica máximo enriquecimento dos indivíduos com a, igualmente, máxima sujeição destes às suas próprias condições vitais, como capital. O que de maneira alguma impede a Marx de afirmar que, apesar, e pela sua, imanente contraditoriedade, o capital é a ordem social do progresso real das formas de apropriação de mundo pelos indivíduos:
 
Cette progression continuelle de savoir e d’experience’ diz Babbage, ‘est notre grand force’. Esta progressão, este progresso social pertence exclusivamente ao capital. Todas as formas anteriores de produção condenavam a maior parte da humanidade, os escravos, a serem instrumentos de trabalho. O desenvolvimento social, o desenvolvimento político, a arte, a ciência, etc., se desenrolava numa esfera acima deles. O capital é o primeiro que aprisiona o progresso social a serviço da riqueza[4].
 
É importante chamar a atenção ao fato de que na forma moderna, e dentro da contradição instaurada nesta, os indivíduos podem, enquanto conjunto social, se apresentar no papel de também consumidores da cultura e da produção. E isto, por si só constitui, para Marx, um avanço significativo. A produção da, e para a, riqueza carrega não apenas estranhamento, mas ao lado disso, a possibilidade de uma humanidade ampliada. Aprisionar a objetivação à riqueza, colocar a produção dos indivíduos imediatamente como produção para a troca, significa igualmente estabelecer o intercâmbio social dos indivíduos como norma da produção.
A lei da sociabilidade moderna reside exatamente na produção da riqueza, que circula, e se realiza na apropriação dos indivíduos. A forma desta lei, o modo sob o qual esta mesma riqueza existe é, para Marx, todo problema; e não a produção de riqueza em si. Ao contrário da compreensão unilateral que condena a riqueza a partir de uma perspectiva antiga, a posição marxiana indica a forma burguesa da riqueza como o problema da modernidade e a sua superação constitui a condictio sine qua non da nova individualidade:
(...) Mas, de fato, uma vez que a forma burguesa limitada tenha desaparecido, o que será a riqueza senão a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas dos indivíduos, universalidade engendrada na troca universal? Senão o pleno desenvolvimento do domínio sobre as forças da natureza, tanto sobre aquelas que se denomina Natureza, quanto sua própria natureza? Senão a elaboração de suas aptidões criativas, sem outra pressuposição que o desenvolvimento histórico inteiro que fez a si um fim desta totalidade do desenvolvimento, do desenvolvimento de todas as potências humanas enquanto tais, sem que elas sejam medidas por uma escala previamente fixada? De outra forma, um estado de coisas onde o homem não se reproduza segundo uma determinada particularidade, mas onde produza sua totalidade, onde ele é tomado no movimento absoluto de seu devir?[5]
 
Esta condição necessária, a produção universal dos indivíduos, evidentemente não é, por si mesma, suficiente. O confronto dilacerante entre forma e conteúdo da objetivação prevalece no mundo moderno como a ferida que faz sangrar o coração pulsante da vida social. Entretanto, deste confronto, não nos é possível tirar, até onde pode ser visto, qualquer ilação no sentido de uma condenação ética ou moralizante da riqueza em Marx. Esta, a riqueza, em verdade, se apresenta como a generidade humana estranhada. Neste sentido, a propositura marxiana de um para além da forma capital do gênero humano não se apoia em alguma máxima abstrata qualquer ou no poder da volição individual. Tal indicativo, quando ele aparece no texto, radica na identificação das possibilidades e necessidades do devir real da individuação humana. É, como vimos na citação acima, a afirmação e confirmação da produção social dos indivíduos. É a confirmação dos indivíduos a partir de seu ser social, e deste pela própria forma da individualidade. Para Marx, o revolucionamento humano é a libertação necessária (da qual se carece) das possibilidades do gênero humano. Este conjunto formado por possibilidade/necessidade estatuído pelo próprio movimento real da sociabilidade surge, em Marx, entrelaçado ao desenvolvimento das forças produtivas dos indivíduos:
O que aparece aqui é a tendência universal do capital, que o diferencia de todos os estágios de produção anteriores. Se bem limitado por sua própria natureza, tende a um desenvolvimento universal das forças produtivas e torna-se assim o pressuposto de um novo modo de produção, não mais fundado sobre o movimento destinado a reproduzir, ou melhor, a sustentar um estado dado, onde o desenvolvimento – livre, sem entraves, progressivo e universal – das forças produtivas constitui ele mesmo o pressuposto da sociedade, e, portanto de sua reprodução, onde a única pressuposição é o ultrapassamento do ponto de partida.[6]
 
A posição deste desenvolvimento sem par na história das sociedades humanas se consubstancia, tanto em seu caráter de posição objetiva quanto naquele dado pela particularidade contraditória do capital, na criação e utilização da máquina, e melhor do sistema da maquinaria, à produção do mais-valor. Na tematização marxiana, a emergência da aplicação tecnológica das ciências, para a qual a referência a Babage remete, tem sua realização consumada na interação orgânica e essencial do processo de produção/valorização com o incremento das invenções que buscam diminuir tendencialmente o tempo socialmente necessário em relação àquele que se destina ao mais-valor. Deste modo, a máquina e mais ainda o sistema da maquinaria aparece como efetivação do valor de uso dos meios de trabalho como capital - especificamente na forma de capital fixo que se opõe formal e categorialmente ao capital circulante, como capital posto de modo autônomo tanto à circulação quanto ao capital variável. Assim,
 
(...) o meio de trabalho experimenta unicamente uma mudança formal, no sentido de que, agora, do ponto de vista material, ele aparece não só corno meio do trabalho, mas ao mesmo tempo como um modo de existência particular dele, determinado pelo processo total do capital - como capital fixo[7]. 
 
E isto é essencial para a determinação propriamente categorial das forças produtivas utilizadas capitalisticamente, pois indica a differentia specifica da forma capital que delimita a existência concreta dos elementos da produção e pode virtualmente adstringir a figuração material-objetiva dos novos meios de trabalho postos pela mediação da tecnologia. O modo de existência das ciências como momento da força produtiva é aquele da propriedade objetivamente inerente e imanente ao funcionamento da tecnologia como capital fixo. A ciência existe como potência produtiva incorporada na maquinaria que defronta como pode autônomo e estranho o trabalhador e sua atividade. A relação mesma dos indivíduos com a maquinaria dá a matriz da sua conexão mediada pelo capital com o desenvolvimento do conhecimento científico e com sua produção. Objetivação que se expressa como autonomia da força produtiva com relação ao sujeito, correlato necessário da forma da propriedade social que conforma a produção da riqueza. Marx chama a atenção vivamente para este aspecto ao observar que "(...) própria máquina, que para o trabalhador possui destreza e força, é o virtuose que possui sua própria alma nas leis mecânicas que nela atuam e que para seu contínuo automovimento consome carvão, óleo etc. ('matérias instrumentais', da mesma maneira que o trabalhador consome alimentos...)".[8] Desta maneira, "A assimilação do processo do trabalho como simples momento do processo de valorização do capital também é posta quanto ao aspecto material pela transformação do meio de trabalho em maquinaria e do trabalho vivo em mero acessório vivo dessa maquinaria, como meio de sua ação"[9]. A independência técnica do dispositivo corresponde aqui, e por isso tem este caráter cada vez mais incentivado socialmente, à natureza do capital como valor autonomizado que se valoriza de forma cada vez mais ampliada a cada ciclo. A maquinaria é o centro produtivo e de comando do processo de valorização, impondo aos indivíduos normas objetivamente postas pela sua própria configuração real e funcionamento.
Todo o itinerário do desenvolvimento histórico dos aspectos ideais e gerais da interatividade social aparece como qualidade, como propriedade imanente, à força produtiva como capital. Evidentemente, o incremento deste power social como progressão de conhecimento e de aplicação tecnológica das ciências aparece e se afigura objetivamente como algo posto pelo capital, como resultado unicamente do desenvolvimento da forma capitalista da produção. Conteúdo e forma da força produtiva se apresentam e confrontam o trabalhador como unidade quase indiferenciada, como capital materialmente posto, ou como mera forma material do capital. Marx assevera que
 
(...) a acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo, na medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no processo de produção[10].
 
O caráter social da produção - tanto material quanto ideal - aparece objetivamente como qualidade do capital, como generalidade oposta à particularidade individual e de classe do trabalhador. A figura concreta deste último somente participa da universalidade, tem relação efetiva com a generidade humana, na medida em que se apresente como forma individual do princípio subjetivo da riqueza, da capacidade de trabalho como força de trabalho assimilada e subsumida ao capital no processo de produção. Daí que as máquinas se apresentem frente aos trabalhadores necessariamente como adversários e adversidades. Na medida em que a tendência de incremento do capital fixo se afirme como decaimento necessário do capital variável, bem como da abstração com relação à especificidade das habilidades individuais, o trabalhador se torna virtualmente dispensável, e dispensável em qualquer tempo, no curso do processo de produção/valorização. Na formulação marxiana, esse desenvolvimento se dá como nexo interno e não como mera coexistência ou acidentalidade. O capital como forma da sociabilidade que põe, ainda que como necessidade exterior, o impulso inesgotável de desenvolvimento da cientificidade. O incremento das ciências, sua liberalização das amarras estritamente acadêmicas constitui um pressuposto histórico, que é continuamente afirmado pelo capital.
No entanto, este caráter economicamente necessário determinado pelo modo de produção, em função da articulação particular das categorias da produção que caracterizam a riqueza como capital, não necessariamente redunda, para Marx, na simples e pura identidade entre força produtiva e capital. A determinidade imediata da maquinaria funcionando como elemento mediador da diminuição do tempo socialmente necessário e incremento correspondente do mais-valor não apaga aquela deste sistema como valor de uso concreto: "(...) isso de modo algum significa que esse valor de uso - a maquinaria em si - já seja capital, ou que existe como maquinaria seja idêntica à sua existência como capital; da mesma maneira que o ouro tampouco deixaria de ter o seu valor de uso como ouro quando não fosse mais dinheiro"[11]. O dilaceramento interno, da forma social de existência, das forças produtivas como capital. Não coincidem, ou melhor, não há uma identidade categorial entre força produtiva e capital, entre conteúdo subsumido e a forma de existência social, expresso na forma da propriedade e da circulação. A forma social é uma determinação histórico-particular de existência. Na concretude da produção abre-se virtualmente um gap, pelo qual a força produtiva pode inclusive suplantar em seus próprios nexos internos as determinidades e exigências econômicas de reprodução da riqueza na forma social do capital. Essa incongruência ou não sobreposição empírica do conteúdo pela forma do valor de uso pela do valor, e pela determinação ontológica primária da efetividade do valor de uso, põem a possibilidade de um desenvolvimento contraditório entre as determinações técnicas da produção e o seu princípio e meta sociais. Trata-se da diferença entre a determinação historicamente engendrada e o processo que esta emergência deflagra em correspondência com a forma social na qual é delimitada, no caso, como força produtiva. Aqui, é a distinção entre o modo historicamente realizado do surgimento da máquina como dispositivo técnico da produção do mais-valor e o modo pelo qual passa a determinar como pressuposição do patamar de desenvolvimento da força produtiva o itinerário de subsunção da produção do conhecimento e de sua aplicação como tecnologia.
O desenvolvimento das forças produtivas impulsionado pelo capital como meio de elevação da taxa de extração de mais-valor põe virtualmente uma crise crescente entre a produção da riqueza e o modo de sua medida social. Este último tem como fundamento exatamente a equiparação dos trabalhos concretos mediante a redução destes a trabalho indiferenciado, tempo simples e imediato de dispêndio social de capacidades de produção. Obrigatoriamente estas têm negadas suas características específicas em benefício de um gasto social medido por um tempo economicamente homogênio. O capital no seu próprio evolver como modo de produção da vida põe a forma da riqueza como tal, sem uma ligação a priori com alguma modalidade objetiva ou de figura fornecida pelo conjunto de propriedades inerentes a um produto destinado a satisfazer carecimentos. Por um lado, autonomiza a forma com relação ao conteúdo do carecimento humano individual, mas, por outro lado, torna também a atividade produtiva, seus métodos técnicos e seus produtos igualmente libertos dos limites imediatos que os adstringiam em momentos anteriores ou formações societárias diversas daquelas do capital. O importante é ressalvar o nervo contraditório deste desenvolvimento, no curso do qual "(...) ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado"[12]. A contradição em processo se situa exatamente no desenvolvimento necessário de força produtiva, imposto pelos imperativos da valorização do valor. Rumo de incremento de potência social de apropriação de mundo que virtualmente dispensa como fundamento miserável a própria medida de valor - tempo socialmente indiferenciado de trabalho - em razão do deslocamento crescente do acento determinativo em direção ao capital fixo, em detrimento da porção variável, daí igualmente do tempo imediato de produção para o lado do desenvolvimento e progresso dos meios de trabalho, como realizações da aplicação tecnológica das ciências à produção.  A medida social da riqueza se revela potencialmente acanhada e limitada frente ao conjunto das forças produtivas existente como capital, bem como daquele composto pela atividade produtiva que as engendra.  Para Marx, o problema da medida social da riqueza é um desafio, antes de tudo, para o próprio capital como forma de produção da vida humana. Isto indica o rumo histórico aberto pelo capital, não obstante sua natureza extremamente opositiva, que se apresentou e se apresenta como espaço social formal para o florescimento concreto das forças de apropriação de mundo, ainda que no dilaceramento:
 
Anatureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, 'telégrafos elétricos', máquinas de fiar automáticas, etc. Elas são produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua atividade na natureza. Elas são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada. O desenvolvimento do 'capital fixo' indica até que ponto o saber social geral, conhecimento, deveio força produtiva imediata e, em consequência, até que ponto as próprias condições do processo vital da sociedade ficaram sob o controle do 'intelecto geral' e foram reorganizadas em conformidade com ele. Até que ponto as forças produtivas da sociedade são produzidas, não só na forma do saber, mas como órgãos imediatos da práxis social; do processo real da vida[13].
 
Não obstante de um modo estranhado e contraditório, o capital é aquele contexto societário no qual o todo da produção humana, material e espiritual, se encontra em conexão com a produção concreta dos indivíduos, em liames essenciais, na medida em que o conjunto das objetivações humanas está presente como força produtiva já da vida material dos indivíduos e do intercâmbio social recíproco.  Quanto mais subsumida a ciência à produção, mesmo na forma do fundamento acanhado, como capital fixe, como simples meio de extorquir mais-valor, tanto mais é ela assunto do gênero humano como um todo. O desenvolvimento progressivo e automediado do capital fixo demonstra até que ponto alcança uma dada sociedade capitalista no que tange à universalização da produção e do conhecimento. O sistema da maquinaria poupa tempo de trabalho, sob a forma do aumento da produtividade, como tempo diretamente social oposto e estranhado em relação aos indivíduos produtores. O desenvolvimento das forças produtivas virtualmente revolve a medida porquanto ponha em marcha tendencialmente o tempo socialmente disponível, liberado da coação da produção direta da vida, como a riqueza efetiva. No entanto, apesar de posto em movimento pelo, e no interior, do capital, este processo se desenrola dentro dos parâmetros do tempo socialmente necessário. A própria temporalidade social se constitui como efetivação contraditória entre a medida por tempo pretérito objetivado que determina o ciclo formal de realização da riqueza e aquela medida pelo tempo potencial, ou "futuro", assinalando a riqueza como virtualidade da produção. Neste imbróglio, os indivíduos coagidos a trabalhar sob a forma do assalariamento, quando não dispensados como força de trabalho (tempo vivo) supérflua, trabalham relativamente mais que antes, pois a medida virtual do tempo disponível continua submersa, ou subsumida em alguns poucos casos, à lógica da valorização, da apropriação de sobretempo de trabalho, de mais-valor.
Para terminar, passa-se à indicação de um problema que originou no século XX um conjunto de posições bastante diferenciadas e até opostas com respeito ao caráter contraditório das forças produtivas no capital - do Lukács de História e consciência de classe aos posicionamentos da dialética negativa dos frankfurtianos, passando obviamente pelo modo de interpretação heideggeriana da técnica. Como possível corolário do exame marxiano do evolver contraditório do capital como produtor de riqueza, dos Grundrisse consta: "(...) o trabalho do indivíduo singular em sua existência imediata é posto como trabalho individual abolido, i.e., como trabalho social. Assim, é eliminada a outra base desse modo de produção"[14]. Esta é uma tese marxiana que evidentemente precisa ser discutida à luz dos desenvolvimentos ulteriores, em especial do século XX, onde a tendência do capital a pôr-se preponderantemente como fixo efetivamente se observou.Até que ponto a crise de medida foi agudizada ou, contrariamente, suavizada, pelo incremento de força produtiva e pela assimilação massiva das ciências ao circuito do capital? Mas se é necessário fazê-lo escoimada das pressuposições metafísicas, antropológicas ou fenomenológicas, a partir das quais certas argumentações não fazem mais que repisar a homilia do pecado original, repetida ad nauseam desde os mitos da expulsão do paraíso e de Prometeu.
 
Bibliografia:
 
ALVES, A.J.L. “Ciência, força produtiva e capital na crítica marxiana da economia política”. En: Projeto História n. 34. São Paulo: PUC-SP, 2007.
CHASIN, J. “Rota e prospectiva de um projeto marxista”. En: Ensaios Ad Hominem, Tomo IV. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001.
HEIDEGGER, M. „Die Frage nach der Technik“. En: Heidegger Gesamtausgabe Band 07, Vortraege und Aufsaetze. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000.
LUKÁCS, G. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
MARX, K. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. En: Marx-Engels Werke, Band 42. Berlin: Dietz Verlag, 1983.
MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e estado capitalista. São Paulo: Editora Ensaio, 1996.


[1] Professor da UFMG, Doutor em Filosofia e membro do Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes, CNPq - Brasil.
[2] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, In Marx-Engels Werke, Band 42. Berlin: Dietz Verlag, 1983, p. 422.
[3] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 448.
[4] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 492.
[5] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 395-396.
[6] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 445.
[7] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 609-610.
[8] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit.,, p. 593.
[9] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit. P.593.
[10]Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 612.
[11] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 594.
[12] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 602.
[13] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., idem.
[14] Marx, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Op. Cit., p. 605.

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