Isabella Fernanda Ferreira
Univ. Fed. de Mato Grosso do Sul
O relacionamento da obra de arte com o universal torna-se
tanto mais profundo quanto menos a obra tenha a ver
explicitamente com universalidades; quanto mais se impregne
com seu próprio mundo em destaque, com seu material,
seus problemas, suas consistência, sua maneira de expressar-se.
Apenas atingindo o ápice da individualização genuína, apenas
obstinadamente seguindo os desideratos de seu concretizar-se
é que a obra se torna verdadeiramente portadora do universal.
(Adorno, 2000, p 25)
Com a cibercultura, assistimos ao surgimento de diferentes manifestações do hipertexto tais como o e-book ou livro eletrônico, o livro-game, o ciber-romance, a ciberpoesia e até mesmo, a presença de bibliotecas virtuais. Tais manifestações são formas de divulgação de um trabalho artístico com a presença da interatividade e do apagamento de fronteiras em relação ao autor e ao leitor, enfim, de novos modos de criar literatura e de narrativas ficcionais. Essas formas diferenciadas do hipertexto virtualiza o computador criando o ciberespaço e, com ele, uma cibercultura, isto é, uma cultura própria desse espaço virtual.
Uma das defesas otimistas dessas produções artísticas estaria fundamentada na possibilidade de criação de um texto plural e aberto baseado na intervenção e na interação coletiva para uma permanente estruturação e reestruturação dos hiperdocumentos que garantiria seu status de universalidade. Apoiados nos teóricos críticos, sobretudo, em Adorno, Benjamin e Marcuse, refletiremos sobre o caráter universal de uma produção artística e suas possíveis relações com a produção do hipertexto no ciberespaço.
Historicamente, o desenvolvimento das tecnologias informáticas foi o que possibilitou a criação do ciberespaço e, com ele a cibercultura que pode ser definida como um grande abrangente complexo das implicações culturais advindas das manifestações que são produzidas no ciberespaço e que compõem um conjunto generalizado de técnicas tanto materiais como intelectuais. A questão por nós abordada é que tais manifestações são apropriadas tanto pela arte como sua possibilidade de objetivação como também por uma racionalidade fortemente industrializada. Perante a esse conjunto de fatores, a expressão artística passa por um redimensionamento por meio de uma das manifestações culturais do ciberespaço que consiste na produção do hipertexto.
Através do hipertexto assistimos a uma adequação das formas estéticas no ciberespaço. Nele, segundo Levy (1996), o artista é aquele que providencia as virtualidades, arquiteta os espaços de comunicação, organiza os instrumentos coletivos da cognição e também da memória e, por fim, aquele que juntamente com o universo dos dados estrutura a interação sensório-motora, entre os quais, estão Tim Berners Lee e todos os programadores inventores da WorldWide Web, os criadores de videogames, os inventores de programas para trabalho cooperativo.
Ainda segundo Lévy (1996), a cibercultura não substitui com suas manifestações artísticas, a memória das culturas antigas, assim como o contrário também não acontece, entretanto, a arte presente no ciberespaço possui suas especificidades, das quais, o autor cita como elementos centrais: o declínio da figura do autor e o declínio da gravação.
A obra artística no ciberespaço implica necessariamente a uma experimentação que se realiza por meio da interação possibilitada pelo aparato técnico, no qual, os artistas participam na re-estruturação das mensagens que recebem. Essa possibilidade de re-estruturação das mensagens oferecem a essas obras artísticas um caráter coletivo de criação a que Levy (1999) denominará de obras-fluxo, obras-processo e que por isso, segundo ele, terminam por não possuírem um caráter de armazenamento, isto é, de conservação, uma vez que são“abertas” durante o seu processo de produção.
Os adeptos desta expressão artística presentes no ciberespaço defendem a ideia de que não há a necessidade da existência de um autor tal como a sociedade começou a exigir no contexto histórico da criação da imprensa e da reprodução industrializada dos textos como meio de definição do estatuto jurídico e econômico desses redatores.
Lévy (1999) defende a noção de que o conceito de universalidade das obras artísticas interativas estaria relacionado ao fato das mesmas se apresentarem de maneira onipresente na rede. Esse entendimento da causa da universalidade dessas obras artísticas interativas desencadeia o fenômeno denominado por ele de destotalização. Universalidade da obra nessa perspectiva seria sinônimo de democratização de acesso coletivo tanto da contemplação como da criação da mesma possibilita pelo aparato técnico virtual.
Nesse sentido, o fenômeno da destotalização, característica específica das obras interativas na rede, ocorreria através de dois fenômenos simultâneos: o declínio do autor como meio para o fechamento de sentido da obra e o declínio da gravação como meio do fechamento físico e temporal da obra. A presença tanto do autor como da gravação, seriam na perspectiva de Lévy (1999), os requisitos necessários para o que ele denominou de totalização - fenômeno que para ele seria característico das obras artísticas clássicas – que ao contrário das obras artísticas interativas, primam pela conservação da obra, fazendo da mesma uma mensagem acabada. Nesse aspecto as obras clássicas que não passam por metamorfoses no processo da sua produção e, que por isso, podem ser conservadas seriam, portanto, ao contrário das obras produzidas de maneira interativa, imanentemente dotadas de totalidade.
Podemos afirmar que se fundamentaria no declínio do fenômeno da totalidade nas obras artísticas interativas que emerge o universal característico da cibercultura, isto é, um universal sem totalidade.
Para Lévy (1999) o fenômeno da destotalização é viabilizado através de três principais elementos que são capazes de atualizar textos, imagens e músicas. Seriam eles: o hiperdocumental dispositivo existente na rede para leitura-escrita; a presença de uma comunidade de cooperadores diferenciados - principalmente no caso da música que trabalham em um processo recursivo de criação e transformação de uma memória-fluxo; e por fim, a definição do estado virtual da imagem pela interação sensório-motora com um conjunto de dados. Nesses três elementos, tanto através da interação como por meio da imersão, o receptor da realidade virtual adquire a possibilidade de participar da produção dessas obras interativas, transformando-as, sendo em parte seu autor.
Levando em consideração os entendimentos acima apresentados sobre os fenômenos da totalização das obras clássicas e da destotalização das obras artísticas interativas, como pensar o conceito de universalidade da arte defendido como sinônimo de produção acessível coletivamente. Tal processo reflexivo não se trata da negação da possibilidade da existência de obras artísticas universais no ciberespaço, mas sim de refletir sobre a condição para que a mesma carregue a sua marca de universalidade, ou seja, trata-se de negar o que está negando a essas obras artísticas de caráter interativo a sua possibilidade de universalidade, ainda que a priore, seja o que socialmente esteja afirmando ideologicamente a existência dessa universalidade.
A universalidade da arte entendida como produção coletiva por meio da interatividade proporcionada pelas técnicas presentes no ciberespaço termina por estabelecer uma relação direta entre produção e coletividade que pode colaborar para o seu oposto: a não universalidade dessas manifestações artísticas como mecanismo do que Adorno definiu no seu texto “Teoria da Semicultura” (1995) de integração ideológica que acaba se estabelecendo pela via da interatividade.
O entendimento de que se aloja na produção coletiva de uma obra de arte a condição para a sua universalidade retira desse mesmo processo de produção a dimensão da mediação entre o momento da sua produção e os momentos da sua contemplação que se estabelece de modo não direto e que possibilita à obra de arte ter na sua micro expressão a presença do macro, isto é, quando consegue conquistar através do apogeu de sua genuína individualização, a condição para a sua universalidade.
Concordamos com Adorno (1988) que pela via da não diretividade a universalidade de uma obra artística é possibilitada quando apesar da obra pertencer a um tempo específico ou seja, a um tempo histórico no qual ela foi produzida, a mesma é reapropriada, reinterpretada em outros momentos históricos, por outros inúmeros sujeitos que darão os seus sentido, as suas interpretações há algo que já detinha um sentido atribuído pelo próprio artista no ato da criação da obra que apesar de individual não é restrito. Essas reelaborações a algo que a priore é individual termina por se perpetuar fazendo com que uma produção artística genuinamente individual seja eterna, aberta, universal apesar de única.
Nesse aspecto, entendemos que a presença de uma autoria que não carregue a marca da interatividade e da coletividade em uma obra artística não seria sinônimo de fechamento de sentido porque a mesma carrega em si mesma a possibilidade da reinterpretação por parte de quem as absorve. O mesmo se estabelece com relação ao caráter de conservação ou de gravação que também não poderiam ser estritamente entendidos como as causas para o fechamento físico e temporal de uma obra de arte, uma vez que, marcam tão somente a sua autenticidade, isto é, a sua singularidade, a sua originalidade que está intimamente relacionada com o momento histórico da sua produção, o que não a impossibilita de ser absorvida em outros tempos que não os da sua produção.
A afirmação de que tanto o declínio do autor como o da gravação de uma obra artística traria para as obras produzidas no ciberespaço – ao hipertexto – o seu caráter de universalidade pode ao contrário colaborar justamente para o seu oposto, uma vez que pode ocorrer a perda do conteúdo da sua autenticidade que está enraizado em uma tradição que nos termos de Benjamin (1993) representam “o aqui e o agora” da sua originalidade, isto é, a sua única existência, permitindo a sua reconstrução histórica e com ela todas as reinterpretações possíveis que a perpetuam, universalizando-a.
Aliada a essa possibilidade de perda do conteúdo autêntico por meio desse crescente processo de coletivização da produção da expressão artística, contemplamos a presença de um homem multidimensional, isto é, aquele que por meio do ciberespaço consegue se fazer onipresente.
Entretanto, essa onipresença, marcada por uma multidimensionalidade que é compreendida como sinônimo de universalização também está inserida em um contexto social, no qual, percebemos que mesmo em diferentes locais, o homem atual encontra uma enorme dificuldade para expressar-se também diferentemente. Dificuldade esta promovida por uma maneira de pensar totalitária e que Marcuse (1973) definiu como unidimensionalizada que não se apresenta de maneira neutra em relação aos processos de produção vigentes, no caso específico, o capitalista com suas metamorfoses históricas.
O aparato técnico que possibilita o hipertexto como um produto do ciberespaço é um dos elementos que compõem a cibercultura e que carrega em si mesmo, uma ambigüidade de características. De um lado, ele tem como objetivo final a criação de uma existência mais humanizada e, por outro, esse mesmo aparato, destrói este mesmo objetivo quando a racionalidade irracional do sistema capitalista vigente termina por preponderar unidimensionalmente, e, portanto, de modo totalitário nesse aparato técnico, carregando nos termos de Marcuse (1973) inicialmente o negativo que se encontra no positivo, ou seja, o desumano que se aloja na humanização, a escravização que se aloja na libertação.
O fenômeno da multidimensionalidade possibilitado pelas tecnologias informáticas, no qual, as pessoas são capazes de estar em vários lugares “ao mesmo tempo” também pode ser compreendido como um fenômeno unidimensional, quando essas mesmas pessoas reproduzem por meio da interatividade, a racionalidade irracional e os seus modos de agir e pensar “únicos” de maneira multidimensional por meio do computador.
Estamos, sendo assim, diante de uma nova dialética. Ao mesmo tempo em que o individuo é portador de uma multidimensionalidade, ele também é detentor de uma unidimensionalidade. Ser consciente da presença desta dialética é usar uma tecnologia sabendo que ela possui uma carga ideológica, é posicionar-se criticamente frente a essa unidimensionalidade, tendo como possibilidade a criação nessas redes virtuais de resistência à reprodução de interações totalitárias com vistas à integração.
Nesse movimento dialético de negação e reafirmação de características contraditórias como o fenômeno da multidimensionalidade e da unidimensionalidade, perguntamo-nos: o que a reprodutibilidade técnica possibilitada pelo aparato técnico virtual ocasiona nesse processo de tensão, no que concerne à produção das obras artísticas interativas?
O contexto social de produção de um homem unidimensional por meio de uma tecnologia da espoliação, caracterizado por Marcuse (1973), também é o que configura a produção de uma indústria cultural que corrompe diretamente as obras artísticas, tanto no momento da sua contemplação, como no momento da sua própria produção disseminando o que Adorno (1996) denominou de semiformação cultural.
No contexto histórico da reprodutibilidade técnica e da indústria cultural, as obras para serem objetivadas e, desse modo, poderem ser expostas, apresentadas, ou seja, democratizadas, elas passam por momentos de coerção ora explícitos ora mais sutis.
No momento da produção de uma obra de arte o artista tem a sua arte constrangida de modo subjetivo quando o seu próprio ato criativo se apresenta comprometido com criações muito semelhantes ao que se apresenta vigente como produto da indústria cultural e também quando condiciona o seu ato criativo a esses modelos vigentes para que seu produto seja consumido.
Tal constrangimento não se apresenta tão somente no momento da produção/criação de uma obra de arte, mas também ao momento da sua apreciação quando a indústria cultural consegue reduzir esse momento contemplativo como sinônimo de diversão e entretenimento o que colabora para o que Adorno (1988) denuncia como uma regressão dos sentidos e da capacidade de reflexão que o elemento mimético presente em uma obra de arte pode estimular, perdendo com isso, a oportunidade, tanto de um autoconhecimento, como do conhecimento do “mundo” que o circunda.
Esses constrangimentos rompem com a dialética da essência da obra-de-arte anunciada por Adorno(1988) em sua obra Teoria Estética que se caracteriza pela tensão existente entre o elemento mimético e o elemento racional que são intrínsecos à obra de arte.
A cibercultura inserida em um contexto histórico em que a reprodução técnica, a reprodução da arte se tornou a própria arte, ou seja, em um contexto social em que a técnica deixa de ser, segundo Adorno (1988) intra-estética (sendo apenas um meio para a concretização de sua expressão) para se tornar extra-estética, enfim, tornando-se a própria finalidade da sua expressão, assistimos a um redimensionamento do que se avalia como sendo a constituição da arte em si. Tal redimensionamento colabora para o rompimento da relação dialética entre os elementos racionais e miméticos e, com isso, constrange a arte na sua expressão.
Concordamos com Adorno (1988) de que a arte necessita da tensão entre os elementos miméticos e racionais inerentes a ela para conseguir se expressar, isto é, para conseguir alcançar aquela linguagem imediata que permite a expressão daquilo que nenhuma linguagem consegue expressar.
Nesse sentido, o elemento mimético é o que irá permitir ao sujeito se encontrar com o natural, com o encantamento, podendo com isso, apresentar o seu irracional. Ele é o que fornece a possibilidade da expressão do inconsciente, das sensações, dos sentimentos, do afeto que o artista deseja demonstrar. Entretanto, para conseguir expressar essa irracionalidade, o artista por meio do elemento racional caracterizado pelo momento criador e organizador, planeja qual o melhor modo para transformar em linguagem toda a sua irracionalidade. Porém, para que essa linguagem se torne concreta, faz-se necessário a presença da técnica como meio para a consolidação da expressão racional do elemento irracional que é a mímeses.
Nesse movimento dialético da mímeses e da racionalidade inerente à obra de arte como condição para a sua expressão, não existe nem a absolutização do elemento mimético, e nem a absolutização do elemento racional, mas sim, uma tensão, uma coexistência, uma interligação, uma ocorrência de aspetos autônomos e adaptativos que ora se negam e ora se reafirmam.
Entretanto, na sociedade industrial moderna com seus avanços tecnológicos, em específico, com a virtualização do computador e suas ferramentas técnicas possibilitadas pelo ciberespaço para a produção de obras artísticas interativas, o artista depara-se com toda uma problemática em torno do que Adorno (1988) definiu como as técnicas que são intra-estética e aquelas que são extra-estetica.
A técnica, pode ser de um lado, intra-estética ajudando a arte como um meio para efetivar a sua expressão, ou por outro lado, tornando-se extra-estética, isto é, um fim em si mesma, desencadeando a plena integração da obra de arte no seio da indústria cultural, rompendo com isso a tensão dialética entre os elementos miméticos e os elementos racionais que proporcionam à arte a sua expressão e gerando uma redução da arte que impedida de se expressar consegue tão somente se manifestar.
Compreender a dialética da técnica gerada no âmago da sociedade industrial moderna que relativiza a finalidade da obra artística ou a redimensiona, é central para refletir sobre todas as obras artísticas existentes em nosso contexto histórico, no qual, o ciberespaço além de oferecer suportes técnicos diferenciados que permitem a produção de obras artísticas interativas como o hipertexto e suas modalidades, também é produtor de uma cultura da virtualização a que denominamos de cibercultura que não está neutra em relação à ditadura da produção capitalista.
O hipertexto emerge ao lado dessa problemática da técnica “intra” e “extra” estética (ADORNO, 1988) e, portanto, não pode ser interpretado sem levar em consideração tal dicotomia. Nesse sentido, como obra de arte, o hipertexto pode ou não ter sua expressão comprometida, pois, ou sua produção se integra totalmente à coerção ideológica da indústria cultural, ou por outro lado, garante sua expressão pela presença da tensão entre os elementos miméticos e racionais, tornando-se uma “denúncia” em meio a essa realidade de total integração, de total adaptação em que ela está inserida, tornando-se “resistência”.
Procuramos, com essa análise, desmistificar a afirmação de que ocorreria a universalidade das obras interativas do ciberespaço tão somente pela via do acesso coletivo da sua produção. Tal afirmativa é considerada por nós acrítica e simplista, colaborando ideologicamente para a adesão da integração dessas mesmas obras a uma reprodução estandardizada que se manifestam, mas não conseguem se expressar. Entendemos ainda, que a negação dessa afirmativa é necessária para se pensar possibilidades de produção das obras interativas que possam também carregar a marca da sua universalidade.
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