Pretende-se aqui discutir a gestão das escalas do mecanismo de segurança que tem como substrato a desigualdade social e o estreitamento dos espaços de expressão política ao avanço de seu controle e utilização.
Os conflitos por segurança no Rio de Janeiro
Como na música de Gilberto Gil o Rio de Janeiro continua lindo, mas seu povo expressa coletiva e cotidianamente seus problemas e tensões. Através dos conflitos urbanos – confronto ou embate entre atores públicos coletivos que têm a cidade como espaço e objeto de suas manifestações – podemos acessar os conteúdos das lutas urbanas, sua espacialidade, sazonalidade e freqüência; os atores envolvidos, formas de manifestação e difusão das reivindicações que conformam um quadro conjuntural da cidade.
O Observatório dos Conflitos Urbanos (
www.observaconflitos.ippur.ufrj.br) disponibiliza na rede mundial de computadores informação sistematizada e permite consultas livres, simples ou combinadas, sobre os conflitos urbanos na cidade do Rio de Janeiro de 1993 aos dias atuais. A construção deste sítio possibilitou a pesquisa e o registro de informações relacionadas com a conflituosidade urbana, oferecendo a possibilidade de projetar no mapa da cidade a diversidade conflituosa, mostrando como diferentes grupos e segmentos reivindicam e lutam por melhores condições de vida.
Atores, objetos e objetivos de conflitos, temporalidades, formas, geografias, retóricas e simbologias oferecem um quadro complexo e diferenciado da cidade. Como e onde se manifestam os conflitos? Que reivindicações, anseios e frustrações emergem? De que maneira a desigualdade sócio-espacial se expõe a partir de informações sistemáticas? Movimentos sociais organizados e manifestações de multidões, ações coletivas na justiça ou abaixo-assinados, inúmeras são as formas através das quais a cidade expõe sua desigualdade e, mais do que isso: elabora as formas de enfrentá-la.
O Rio de Janeiro aparece em seus conflitos como metrópole de destaque no que concerne à desigualdade e à violência. Os conflitos urbanos, em sua complexidade e diversidade, permitem uma leitura acerca das formas assumidas pela desigualdade e pela violência urbanas.
Agrupados sob o objeto ‘Segurança Pública’ os conflitos que expressam a luta por justiça e denunciam a violência apontam que se vive na cidade, há mais de dezoito anos, sob arriscado mecanismo produtor de insegurança. Ocorre na cidade do Rio de Janeiro uma divisão social do espaço ao menos no que diz respeito à administração da violência na cidade. De um lado temos os moradores das favelas, que são tomados como ilegais ou perigosos oficial ou extra-oficialmente. São os moradores das chamadas “habitações subnormais”, engajados em trabalho precário e condições de vida idem, submetidos a práticas territoriais que limitam seu direito de ir e vir, e dizima parcela expressiva da juventude pela morte violenta. De outro a chamada “cidade formal”, gradeada, quando pode blindada, desejosa de proteção, alarmada pela mídia e pela criminalidade concreta.
No período compreendido entre janeiro de 1993 e fevereiro de 2011 somaram-se 603 mortes denunciadas e motivadoras dos conflitos por segurança pública registrados pelo Observatório. Destas, 85,7 % (517 mortes) ocorreram nas favelas da cidade e 14,3% (86 mortes) ocorridas em todos os outros bairros em conjunto.
Das 603 mortes que causaram manifestações por segurança, a grande maioria é de jovens e adolescentes. Há um corte, se tomarmos a cidade como espaço das ações das polícias Militar (principalmente) e Civil (residualmente). Aqui a cidade é partida na cabeça de quem governa, de quem orienta o mecanismo ou as políticas de segurança pública.
Como a política de segurança pública é o alvo principal das manifestações coletivas constantes do Observatório (37%) e o Estado o principal agente reclamado (é reivindicado em 87% dos eventos do tipo segurança pública), temos que a política de segurança aplicada no Rio de Janeiro segue uma orientação de “Cidade Partida”, dividindo sua ação em duas frentes, uma claramente opressora, justificada pelo enfrentamento ao comércio de entorpecentes, outra protetora, da propriedade, pública e privada e da pública muitas vezes tornada privada.
As regiões mais pobres da cidade, sobretudo as favelas, concentram o maior número de conflitos por segurança, o maior número de assassinatos denunciados e se constituem no espaço privilegiado da ação repressora violenta da polícia. Ocorrem nas favelas mais de 60% destes conflitos em que a expressa maioria das reivindicações se dirige a um tratamento cidadão por parte da polícia em seus locais de moradia. Assassinatos de crianças e idosos; utilização de veículos blindados que surgem inesperadamente e entram atirando nas comunidades; utilização de armas e táticas de combate na direção das favelas e a proteção dos espaços de maior circulação e poder aquisitivo na cidade, essa a marca geral deixada pelos mais de 700 eventos conflituosos do objeto segurança no período recortado.
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Ações que pelo nível de envolvimento dos governos, da grande mídia, da “opinião pública”, pelo caráter modelar que adquiriram ao longo da primeira década do século XXI, pela perspectiva de disputar e ocupar os espaços concebidos como perigosos, se configuram enquanto políticas. E políticas que violam espaços pobres, que operam o alargamento das possibilidades de alteração, de avanço das ilegalidades em suas ações expandindo as fronteiras do que foi pactuado em leis e que reiteram a idéia de favela como algo passível de experimentações de ilegalidades.
Políticas que forçam através de suas práticas, em nome da ordem, uma permanente discussão, ainda que velada e à custa de vidas, sobre o que é permitido, o que fica legitimado fazer em tais espaços para diminuir o risco social e o perigo representado pela operação da delinqüência útil, o varejo do tráfico de drogas.
“(...) o meio delinqüente era cúmplice de um puritanismo interessado: um agente fiscal ilícito sobre práticas ilegais. Os tráficos de armas, os de álcool nos países da lei seca, ou mais recentemente os de droga, mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da “delinqüência-útil”: a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em delinqüência. Esta é um instrumento para gerir e explorar as ilegalidades.” (FOUCAULT, 1987, p. 232)
Políticas que assumem um caráter de combate que se dirige ao território das favelas e seus moradores e aos úteis delinqüentes. A utilidade da operação do tráfico de drogas nas favelas da cidade se caracteriza pela opressão aos moradores em seu cotidiano tornando seu local de moradia vulnerável a tiroteios, a ações inesperadas e violentas por parte da polícia ou de grupos de traficantes de facções rivais e mais recentemente ameaçados ainda pela instalação de milícias; cotidiano que praticamente impede a expressão política coletiva dos moradores; útil ainda a ação de controle territorial do varejo do tráfico de drogas à geração de receitas aos gestores do atacado do comércio de entorpecentes que não residem nas favelas, mas lucram muito com sua violação; receitas que servem ainda ao “arrego”, espécie de mesada paga pelos traficantes à polícia para que não crie maiores problemas ao comércio das drogas. Útil ainda e especialmente porque a ação do tráfico de drogas é a justificativa central de todas as políticas aplicadas em nome da segurança pública na cidade; elemento legitimador da suspensão de direitos interessada e aplicada a cada caso de intervenção nas favelas em que se aciona a retórica da guerra, do combate intenso à determinada localidade em razão da ‘necessidade’ de extermínio da ilegalidade maior representada pelo tráfico. E como em guerras há a suspensão das leis justificada pela ameaça às próprias leis por um inimigo externo, a utilização da retórica da guerra no caso do Rio de Janeiro funciona como legitimação de utilização de táticas excepcionais e, portanto fora do direito, liberando ilegalidades no combate ao inimigo interno, o tráfico de drogas.
Ocorre que tal processo livra a polícia de maiores esclarecimentos sociais sobre sua conduta e de investigações sobre suas conseqüências. Há inúmeras manifestações registradas no Observatório dos Conflitos que retratam a luta das mães e parentes de meninos mortos em operações policiais que seguem ritual de denúncia, manifestações públicas, instauração de processos, longas esperas e punições brandas, isso quando o crime tem natureza bárbara e por isso instaura um acompanhamento de setores da mídia, dos movimentos sociais e de partidos políticos de minoritária representação.
A polícia militar do Rio de Janeiro age com excessiva liberdade e os registros do Observatório mostram que em muitas ocasiões age em desacordo com as orientações gerais que partem do governo estadual, denotando preocupante independência dos mecanismos de controle social sobre sua gestão. Em sua história recente há inclusive períodos em que a secretaria de segurança pública premiava em dinheiro os policiais por bravura, quando matavam traficantes em suas incursões pelas favelas da cidade. A premiação, apelidada pela população de “premiação faroeste”, vigorou por mais de três anos durante a década de 1990 premiando o assassinato inconstitucional e sem o devido processo legal na apuração das ilegalidades cometidas.
Tal mecanismo de segurança se articula em resposta à realidade social desigual que é expressa pelos moradores também em outros tipos de conflitos. Moradia, transporte, saúde, educação, acesso e uso do espaço público, meio ambiente, legislação urbana, nossos Objetos de conflito revelam todos, o caráter desigual das condições de vida a que são submetidos os moradores da cidade. Mesmo um desatento leitor das fichas de conflitos em nosso sítio na internet perceberá logo as diferenças sociais entre grupos e seus anseios expressos nos conflitos.
Quando o assunto é ‘transporte, trânsito e circulação’, os estudantes, principalmente os matriculados em escolas públicas, em luta pelo transporte gratuito promoveram diversas manifestações no período recortado. Trabalhadores apareceram reivindicando melhorias, regularidade e tarifas menores no transporte público. Os trabalhadores desempregados buscando alternativa no transporte coletivo privado de pequeno porte através das vans.
Trabalhadores desempregados também os atores principais dos conflitos agrupados sob o objeto ‘Acesso e Uso do Espaço Público’. Em coletivo promovem protestos pela possibilidade do trabalho informal como vendedores ambulantes. Trabalhadores chamados de “camelôs” que por terem seus produtos confiscados pela guarda municipal entram em confronto e promovem a maior parte dos conflitos de Acesso e uso do espaço público e que por promoverem seu comércio nas áreas centrais e de maior circulação na cidade obtêm grande oposição das classes médias e altas.
Classes essas que se manifestam muitas vezes em conjunto com ONG´s pela paz na cidade
2, pela despoluição de lagoas e praias ou quando o objeto de disputa é a Moradia contra empresas que não cumprem prazos na construção de edifícios, que por vezes caem.
3 Moradia que é ainda reivindicada por comunidades inteiras ameaçadas de remoção por projetos dos governos que pretendem remodelar o espaço para atender exigências de mercado. Movimentos de sem-teto em ocupações a prédios públicos vazios também são casos comuns de conflitos de moradia do Rio.
Saúde e educação, temas recorrentes de conflitos que denunciam o esvaziamento de investimentos nos serviços públicos e a conseqüente precariedade na prestação destes serviços e que empurram a população na direção dos serviços privados de saúde e educação.
“
O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se apresenta, assim, como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de oportunidades e apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes (em função de seu capital e também da distância física desses bens, que depende também de seu capital). É na relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado.” (BOURDIEU, 1997, p. 161)4
O autor afirma que há uma sobreposição dos espaços sociais objetivados, resultando na concentração dos bens mais raros, se opondo, em todos os aspectos, aos lugares que agrupam os mais pobres. Diz ainda que a capacidade de dominar o espaço, através da apropriação, material ou simbólica, de bens raros, públicos ou privados, distribuídos, depende do capital que se possui. Capital que permite manter à distância pessoas e coisas indesejáveis ao mesmo tempo em que permite aproximar-se das desejáveis.
Os mais pobres lutam inclusive pelo direito de expressar suas reivindicações contra um Estado que além de marginalizá-los, ainda os reprime. Um estado que trabalha na direção de impossibilitar o conflito, de silenciar a crítica, de garantir a livre circulação de uns reprimindo violentamente os locais de moradia de outros.
Por outro lado, nas regiões mais ricas da cidade o poder público tende a atender rapidamente as reivindicações, todas com ampla repercussão nas mídias, permitindo sua livre organização e concentrando os investimentos em áreas suficientemente assistidas. Os conflitos do “asfalto”, ou seja de todos os outros bairros da cidade em conjunto, mostram em maioria, manifestações públicas contra a violência urbana de modo geral, e pela paz na cidade. Geralmente ocorrem logo após algum crime de repercussão ou chacinas. Articulam em seus protestos ONG’s, meios de comunicação de massa, parlamentares e outras autoridades e contam com ampla divulgação e organização manifestando-se nas áreas de maior visibilidade da cidade.
Organizar-se livremente em Associações de Moradores na atual conjuntura da cidade se constitui em privilégio para poucos, restando à maior parte da população a reunião revoltada e espontânea diante de ação imposta pela força e freqüentemente causadora de mortes. Ao longo dos dezoito anos de recorte temporal que o Observatório trabalha fica clara a tendência à burocratização e elitização das associações de moradores que vêm nesse período se distanciando do apoio às lutas populares e se aproximando do que se pode chamar de política institucional. Assim nos bairros em que a livre associação de moradores ainda é uma realidade, havendo diversas associações patrulhadas, vigiadas e controladas por forças que as controlam nas favelas da cidade.
As diferenças sociais marcadas nos conflitos urbanos têm na ação da polícia a principal diferença entre espaços, exatamente porque executa ações repressivas de intensa letalidade nas favelas combinadas com ocupações de outras que têm apontado para uma crescente tendência de controle permanente através da força nos espaços de moradia popular da cidade.
As políticas neoliberais, que no mundo desenvolvido e dominante causam aumento do número de prisões em larga escala, se configurando em processo de criminalização e punição dos pobres, no Rio de Janeiro, processo semelhante adquire conseqüências radicalizadas causando milhares de mortes violentas, principalmente de jovens e negros, e opressão permanente dos locais de moradia dos mais pobres. Mas os trabalhadores insistem em denunciar esta realidade de forma criativa, combativa e coletiva.
Forças complementares?
A relativa independência da polícia verificada na análise dos conflitos urbanos e sua legitimação baseada na retórica da guerra ao tráfico inauguraram nos anos 2000 uma novidade em termos operacionais. Novidade que vem pautando a segurança pública na cidade desde sua instauração: a invasão e posterior ocupação permanente e armada por um pequeno exército de policiais nos territórios de moradia popular, as favelas.
No dia 28 de dezembro de 2000 houve a inauguração da sede do Bope (Batalhão de Operações Espacias da Polícia Militar do Rio de Janeiro) na favela Tavares Bastos, no Catete, zona sul da cidade. A ocupação significava algo como a instalação de um laboratório experimental de afirmação desta nova tática, a da ocupação permanente das favelas. A partir da instalação de um edifício-batalhão do Bope no interior da favela com a conseqüente eliminação do tráfico que ali operava através de tiroteios, mortes, prisões e fugas, houve um processo de institucionalização de uma ocupação policial que perdura e que apresenta caráter exemplar de conduta para o comando da polícia.
Desde então, moradores, ainda que informalmente, narraram que a ocupação realizada pela tropa de elite da polícia militar acarretou uma tomada de poder por parte da polícia em relação aos traficantes, que foram sendo mortos e expulsos e que teria se consolidado uma ocupação policial permanente da favela. Narram ainda que o processo de eliminação do comércio ilegal de drogas, além da repressão violenta aos que abertamente o realizavam, incluía entrevistas com os moradores no sentido de se “averiguar as relações dos moradores com o esquema do tráfico local”. Nestas, os policiais utilizavam um grande fichário em que havia informações sobre os moradores e suas relações de trabalho, familiares e até pessoais, quando referidas a possíveis relações do morador com membros do tráfico local. Ao final da entrevista realizada pelos policias fardados do BOPE, se pactuava a nova “administração” da favela em termos de: “ou se está conosco ou contra nós”.
Em relação ao caráter exemplar que a instalação do batalhão do Bope na Tavares Bastos exerce, é interessante notar que dezenas de policiais vêm realizando desde 2001 treinamentos de combate urbano nas vielas da favela com a participação de policiais de todo o estado do Rio de Janeiro e de outros estados do Brasil. Há matérias de jornais de outros estados como o Maranhão, o Acre e o Paraná que dão conta de seminários e treinamentos interestaduais de oficiais de polícia na favela da Tavares Bastos
5. A ocupação chegou ainda a despertar o interesse das produções de novelas e filmes a fazer filmagens no local, em razão da segurança garantida pelo Bope. A Força de Segurança Nacional também já obteve treinamento específico na Tavares Bastos
6.
Laboratório de operações e treinamentos de efetivos com vistas ao combate aos traficantes de favelas, mas principalmente laboratório de experimentação da nova modalidade de ação: a ocupação permanente por forças policiais das territorialidades faveladas. A presença constante e a circulação de duzentos homens fortemente armados numa favela de população de cerca de dois mil habitantes à época apontava para a necessidade de um efetivo decuplicado (eram cerca de 30000 homens em 2000) dos membros da polícia para que tal política pudesse se estender a toda a cidade ou ao menos às favelas que representassem risco maior à circulação na cidade.
A localização da favela da Tavares Bastos, contígua ao palácio do Governo do Estado, emprestava mais argumentos legitimadores à ocupação o que ajudava a abafar a caracterização da nova realidade enquanto um continuum carcerário como formulava Foucault, para localidades em que se opera a punição radical social com elementos semelhantes aos utilizados pelo autor para definir a prisão no capitalismo:
“Ela se constitui fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza.” (FOUCAULT, 1987, pág.:195)
Vigiam e punem favelas e seus moradores alterando limites constitucionais e que se pretendem de ocupação espacial e policial permanentes. Se política, logo pública e de impacto em todo o corpo social. Dirigida aos pobres, violando seus espaços, direitos e rotinas e por isso tornando as favelas locais da radicalidade punitiva; mas impactando e penetrando em todo o corpo social através de uma racionalidade penitenciária que elabora argumentos qualificadores das favelas enquanto locais de ilegalidades (ilegal inclusive e de início a própria ocupação), ocupadas pelas classes perigosas, de moral questionada e a que se atribui a desordem, a sujeira e a falta de educação. Valores que auxiliam na legitimação da nova forma de prática punitiva que ao longo da década se ampliou e refinou e multiplicou a gestão das ilegalidades na cidade:
“distingui-las, a distribui-las, a utilizá-las; (...) a penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. (...) E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicá-las servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades. O “fracasso” da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí.” (FOUCAULT, 1987, p. 227)
Vainer (2000) discutiu a presença do ideário do planejamento estratégico na condução política da cidade desde o início dos anos 1990 em que o Rio passa a ser pensado enquanto mercadoria, a ser vendido como espaço de investimentos rentáveis, gerido como se empresa fosse através da racionalidade do lucro e vivido enquanto pátria; em que a ordem-unida passava a ser a preparação do ambiente para a recepção de negócios, turistas, eventos e se tudo desse certo Mega-eventos como os jogos Pan-Americanos de 2007.
A formação de um espaço de identidade em que o sentimento predominante passa a ser o patriotismo, a cidade como representante do país, cria um consenso em torno do objetivo, que silencia a crítica, suspende práticas e trâmites e facilita a aprovação de políticas excepcionais para a necessidade de se organizar o espaço em tempo exíguo.
O investimento político na segurança pública numa cidade como o Rio de Janeiro para poder concorrer no mercado de cidades dispensa justificativas. E direitos. E o debate político. Uma solução era necessária e para se atingir esse objetivo a ocupação do Bope na Tavares Bastos ensinava.
Os anos 2000 foram marcados pela ampliação de diferentes formas de dominação permanente de localidades consideradas arriscadas, perigosas e portadoras de potencialidade de promoção de crises, numa cidade que teve além da realização dos jogos de 2007 o fato de ser escolhida para sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tal escalada de acontecimentos motivou a criação de diferentes políticas que resultaram no avanço das milícias, no Projeto de Aceleração de Crescimento do governo federal, o PAC, que quando impacta as favelas, o faz com claros contornos de projeto de segurança, e as Unidades de Polícia Pacificadora, que se instalam nas favelas localizadas nas áreas mais nobres da cidade com efetivos de policiais militares que promovem o controle permanente.
Em 2004 houve declarações de políticos importantes da cidade na direção de incentivar a formação de “milícias comunitárias” nas favelas da cidade para se proteger do tráfico, como ocorria, diziam, nas cidades colombianas de Medellín e Bogotá. A invasão violenta e posterior ocupação permanente de favelas por pequeno exército começava a funcionar sob novo formato e direção. Era o nascimento do fenômeno das milícias que começava a se estabelecer e que poucos meses antes do início dos jogos Pan-americanos já ocupava mais de cem das cerca de mil favelas da cidade. Fenômeno complementar à política de extermínio realizada paulatinamente através das incursões policiais nas favelas da cidade que causou a morte de uma média de mais de mil civis a cada ano a partir de 2004
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As primeiras notícias sobre as milícias davam conta de que eram grupos de ex-policiais e bombeiros que, à semelhança da antiga “polícia mineira”, iniciaram ocupações recheadas de assassinatos de traficantes e expulsões de seus familiares para se constituírem enquanto grupos armados para-estatais com a funcionalidade dos grupos mafiosos: cobrando pela segurança que estaria ameaçada pela presença deles próprios, vendendo proteção. E cobrando taxas sobre serviços como o de internet, TV a cabo e distribuição de gás, além de sobretaxas aos comerciantes das localidades dominadas. Ignácio Cano estabeleceu eixos comuns nas denúncias sobre a atuação das milícias na cidade:
“Passamos a propor a definição de milícia como o somatório dos seguintes eixos, que devem acontecer simultaneamente:
1. O controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; 2. O caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território; 3. O ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos; 4. Um discurso de legitimação referido à proteção dos habitantes e à instauração de uma ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar regras e expectativas de normatização da conduta; 5. A participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos”. (CANO, 2008)
As milícias hoje ocupariam mais de quatrocentas favelas concentradas principalmente nas zonas oeste e norte da cidade. E mesmo tendo sido alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, proposta e presidida pelo único parlamentar do Partido Socialismo e Liberdade à época dentre os setenta deputados da casa legislativa, a CPI das Milícias comprovou a participação de 874 pessoas, civis, militares e autoridades envolvidas diretamente no rentável negócio, inclusive de vereadores, deputados estaduias e federais, delegados de polícia, chefe de polícia civil e de policiais militares e de bombeiros. Houve prisões e renúncias, cassações de mandatos e ameaças freqüentes e intensas ao deputado, mas raríssimas as notícias de repressão policial às favelas controladas pelas milícias.
São utilíssimas na direção da política de ordenamento da cidade, na diminuição da sensação de risco e perigo que o tráfico efetivamente representa. Gerenciam sua atividade através de controle territorial e obtenção de lucros ilícitos, mas sustentáveis, para sua manutenção e ampliação escalar. O estado não gasta tostão nem funcionários na empreitada e se não as promove se beneficia de sua operação em termos de controle social das favelas.
Controle complementado com o PAC e as UPP´s na direção da ocupação permanente de outras poucas, mas importantes favelas em termos de localização. Tanto o PAC, programa do governo federal em parceria com o estadual e o municipal, que no Rio de Janeiro tem significado urbanização de favelas com claros contornos de projeto de segurança pública, em que ‘arruma-se’ a área para depois ocupá-la; quanto as UPP`s, ocupações permanentes de não mais que vinte favelas feitas por novos batalhões da polícia militar. As favelas impactadas por tais políticas são escolhidas em função de sua localização nas zonas mais nobres da cidade e nas áreas próximas ao aeroporto internacional, com óbvias intenções de “pacificar” as áreas de maior e mais importante circulação para eventos como a Copa e as Olimpíadas.
Em outubro de 2007 o Rio de Janeiro foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014 para logo em seguida, em março de 2008, dar início em Manguinhos com a presença e discurso do ex-presidente Lula e de sua ex-chefe da Casa Civil Dilma, prefeito e governador (todos da mesma coalizão política) às obras do PAC (Projeto de Aceleração do Crescimento). Com promessas de construção de milhares de moradias, obras de saneamento, urbanização, hospitais, escolas e áreas de lazer que pouco depois se traduziram em mais da metade do gasto destinado à elevação de uma linha férrea que corta a comunidade e que servia de proteção ao tráfico, duas mil moradias construídas para uma necessidade de abrigar ao menos as quase cinco mil famílias que foram e que ainda serão removidas de suas casas em função das obras. Uma grande escola e um posto de saúde, ambos insuficientes para o tamanho da população local de cerca de 30 mil moradores. Mas a miséria anterior em que vivia parte considerável dos moradores de Manguinhos fez com que o projeto, mesmo limitado, alcançasse respaldo dos moradores. O governador foi reeleito em primeiro turno nas eleições de 2010 e a Presidenta foi eleita em segundo, mas ambos obtiveram votações extraordinárias em Manguinhos, com a maioria absoluta dos votos da região.
Além de Manguinhos o PAC realiza obras em favelas de enorme densidade populacional e de alta complexidade em termos da história recente das organizações do tráfico, são as favelas do Alemão, Rocinha, Borel e Pavão-Pavãozinho. Nas favelas mais densas e complexas da rota pró-Copa e Olimpíadas, o governo federal apóia o município e o estado com exército e financiamento, nas que o governo estadual pode construir com seu próprio efetivo de policiais e com seus próprios recursos, UPP.
As Unidades de Polícia Pacificadora que ocupam hoje dezoito favelas seguindo aquela mesma lógica de distribuição interessada em relação aos jogos, teve início em dezembro de 2008, na favela Santa Marta, zona sul da cidade, em que prefeito, governador e secretário de segurança compareceram afirmando ser aquela uma política para a qual seria dedicada atenção estratégica e prometiam a reprodução daquele tipo de ocupação e controle para mais cem favelas até a Copa de 2014. E já não são raras as denúncias de violações e inclusive de assassinatos de jovens e uma criança de seis anos, cometidos por policiais contra moradores de comunidades “pacificadas” pelas UPP´s, sob a gestão da polícia militar.
A gestão das excepcionalidades
A policialização aciona a retórica da proteção dos espaços públicos a partir da garantia de circulação de pessoas e mercadorias nos espaços que se deve proteger. Com repressão e exploração dos locais que se quer ordenar, organizar, educar. Mas a realização de tais projetos esbarra sempre em realidades distintas, com pesos diversos em termos de densidade populacional, características econômicas, realidades políticas, organização e força da delinqüência útil, carências e necessidades de cada local, de cada favela. E apesar das formas de ação disponíveis, para cada avanço de tais políticas a retórica da necessidade elabora suspensões específicas de direitos, pratica excepcionalidades pontuais e alarga assim as possibilidades de gestão de ilegalidades dentro de um processo político classificado como democrático.
“(...)Mas vai haver momentos em que a razão de Estado já não pode se servir dessas leis e em que ela é obrigada, por algum acontecimento premente e urgente, por causa de certa necessidade, a se livrar dessas leis. Em nome de quê? Da salvação do próprio Estado. Essa necessidade do Estado em relação a si mesmo é que vai, em certo momento, levar a razão de Estado a varrer as leis civis, morais, naturais e produzir algo que, de certo modo, não será mais que pôr o Estado em relação direta consigo mesmo sob o signo da necessidade e da salvação. O Estado vai agir de si sobre si, rápida, imediatamente, sem regra, na urgência e na necessidade, dramaticamente, e é isso o golpe de Estado. O golpe de Estado não é, portanto, confisco do Estado por uns em detrimento dos outros. O Golpe de Estado é a automanifestação do próprio Estado. É a afirmação da razão de Estado, que afirma que o Estado deve ser salvo de qualquer maneira, quaisquer que sejam as formas empregadas para salvá-lo.” (Foucault, 2008, pág. 350)
Vive-se na cidade do Rio sob perigoso mecanismo pelo qual se obtêm poderes excepcionais para a gestão aculpunturística, ou pontual de crises locais em que para cada necessidade única se formula uma forma também única de ação para a consolidação do controle total de determinado território. Controle que se caracteriza pela invasão e subseqüente ocupação permanente do território através de pequenos exércitos, que legitimados em primeira instância pelo aniquilamento das forças do tráfico de drogas e o conseqüente fim dos tiroteios (freqüentes nas favelas da cidade), permanecem sine die, armas em punho, a controlar o comércio de novas mercadorias e serviços.
Giorgio Agambem em seu “Estado de Exceção” discute como a contradição que consiste na suspensão de direitos pelo Estado em momento de algum “tumultos” em que a ordem e as leis estejam ameaçadas criando práticas excepcionais que ao fim garantam a restituição da normalidade legal que aquele evento fizera suspender. Contradição expressa na suspensão das leis e dos direitos para sua própria preservação.
“Mas a aporia máxima, contra a qual fracassa, em última instância, toda a teoria do estado de necessidade, diz respeito à própria natureza da necessidade, que os autores continuam, mais ou menos inconscientemente, a pensar como uma situação objetiva. (...) a necessidade, longe de apresentar-se como um dado objetivo, implica claramente um juízo subjetivo e que necessárias e excepcionais são, é evidente, apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como tais.” (AGAMBEM, 2004)
Não são recentes as práticas de gestão excepcional de determinadas territorialidades, nem isolados os casos em que se elege um sem número de necessidades específicas para se legitimar tal gestão na direção de se garantir liberdade de ação extra-legal aos operadores de intervenções locais específicas. Podem significar incursões violentas da polícia à favelas, ocupações permanentes de espaços pobres por efetivos significativos das forças de repressão ou a instalação de milícias que dominam pela força comunidades inteiras de populações carentes cobrando por serviços diversos organizados em forma de monopólio, dentre os quais a segurança, mercadoria a cada dia mais valorizada nos grandes centros urbanos.
Medo e desordem elementos fundamentais para a gestão muitas vezes extralegal de variadas políticas. Elementos que garantem liberdade de ação à gestão interessada do Estado em restringir os espaços públicos, a esfera pública para garantir o avanço dos espaços privados. Espaços simbólicos ou concretos, que ao avanço do medo, da iminência de uma crise ou guerra ou catástrofe assistem retraídos o avanço frio do movimento de usurpação de anteriores conquistas. É a partir dessa ótica que Naomi Klein em seu livro “A Doutrina do Choque – A Ascensão do Capitalismo de Desastre” descreve acontecimentos como o desastre de Nova Orleans ou do 11 de setembro em Nova Iorque, em que após um desastre, natural ou político, há o aproveitamento da crise para o avanço do ambiente privado em detrimento do público.
A autora fala de superlucros em ambientes de megadesastres como síntese do pensamento de Milton Friedmam, importante teórico do capitalismo moderno que teve a singela idéia de o governo americano criar bônus educacionais para que fossem distribuídos entre as crianças que tiveram 119 de suas 123 escolas públicas absolutamente destruídas pelo ‘Katrina’; para que pudessem freqüentar as novas escolas licenciadas privadas através do carnê de bônus escolares distribuídos. As escolas privadas na cidade eram sete e dezenove meses depois da tragédia já eram trinta e uma. O sindicato dos professores de escolas públicas de Nova Orleans, considerado forte e organizado pela autora, reunia 4.700 professores antes do Katrina, dezenove meses depois, todos demitidos do sistema público, alguns poucos foram reempregados no sistema privado com salários muito mais baixos que os anteriores.
Esse “capitalismo do desastre” nas palavras de Klein fora empregado em Nova Orleans por sugestão expressa de Friedmam:
“Aos 93 anos e com a saúde debilitada, ‘Tio Miltie’, como era conhecido por seus seguidores, ainda assim encontrou forças para escrever um editorial no Wall Street Journal três meses depois que os diques estouraram. “A maior parte das escolas de Nova Orleans está em ruínas.” Friedmam observou, “assim como os lares das crianças que estudavam ali. As crianças agora estão espalhadas pelo país, isso é uma tragédia. É também uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional”.” (Klein, 2008, pág.14)
A autora conta ainda que a velocidade em que se leiloou o sistema educacional da cidade contrastava com a morosidade do Estado em consertar os diques e reparar a rede elétrica. Com a guerra contra o Iraque casos semelhantes como o do ex-agente da CIA que no Iraque fundou uma empresa de segurança privada em meio à ocupação americana e fechou contratos da ordem da centena de milhões de dólares com o governo “iraquiano” e que teria declarado: “Para nós o medo e a desordem oferecem uma promessa real.” Donde a autora conclui que “o medo e a desordem seriam os catalisadores de cada novo salto para a frente” ao avanço do capital.(Klein, 2008, pág. 18)
Friedmam morreu menos de um ano depois do referido editorial aos 94 anos em 2006. Mas este aproveitamento de situações de crise para o avanço do ambiente privado se espalhou e abaixo da linha do Equador ganhou contornos ainda mais radicalizados como no caso de cidades como Rio ou Medellín.
Nestes casos a retórica da guerra contra o inimigo interno e as conseqüentes crises, criadas ou reais, vêm ao longo dos últimos anos mantendo um clima geral de medo e desordem que tem possibilitado o avanço de uma economia política repressora e privatista de espaços públicos.
O quadro atual do mecanismo de segurança que age na cidade do Rio de Janeiro e suas engrenagens permitem o forçar das fronteiras de legitimação das possibilidades de opressão estatal e para-estatal, mesmo que ilegais, a determinados setores sociais da cidade. Criam-se e forjam-se crises para e legitimação de excepcionalidades. E ainda se esboça a questão de se e em que medida este esgarçar de fronteiras da legalidade se relaciona com uma nova forma de economia política do mecanismo de segurança operante na cidade.
As valorizações imobiliárias do entorno das áreas “pacificadas” na zona sul chegaram à ordem dos 400% de aumento desde fins de 2008 aos dias atuais. Houve ainda enorme aumento nas arrecadações de empresas públicas prestadoras de serviços como a Light que vende energia elétrica e passou a cobrar pelo serviço em localidades onde antes as ligações elétricas eram clandestinas. Agências bancárias que se abrem nas favelas, comércios que antes não entravam, valorização dos imóveis dos próprios moradores das favelas, sem falar dos lucros obtidos pelas operações das milícias.
Por outro lado é de se destacar que entre o orçamento e a execução das obras para o Pan-Americano de 2007 houve um aumento de dez vezes dos valores planejados aos efetivamente gastos no evento. Experiências como a canadense, que dão conta de um gasto exorbitante para a realização das Olimpíadas de Montreal em 1976 em que o país levou trinta anos para quitar as dívidas também deveriam ser consideradas, mas são apagadas pela euforia dos jogos.
Esse aspecto legitimador de tais políticas, o econômico, pode estar no centro da aceitação social de tais medidas, posto que a valorização imobiliária dentro e fora das favelas e os últimos resultados eleitorais apontam para a legitimação de tais ações autoritárias e violadoras de direitos. Mas aqui, ao capitalismo de desastre desenvolvido pela autora e verificado nos tiroteios e assassinatos freqüentes nas favelas da cidade do Rio, que são aproveitados pela lógica repressora e exploradora das políticas de segurança, se une uma espécie de capitalismo da festa, ou do Mega-evento em que da mesma maneira há gestão diferenciada e excepcional para o aproveitamento e avanço do capital. E uma lógica não exclui a outra, ou seja, há um acúmulo numa espécie de edifício de práticas que se sobrepõem e são utilizadas de acordo com a especificidade da necessidade.
O Rio conta hoje com uma polícia que mata em média mais de três pessoas
8 por dia na cidade desde o advento da eleição do atual governo, agora (2010) reeleito em primeiro turno com mais de sessenta por cento dos votos. O perfil dos assassinatos cumpre o exaustivo e naturalizado roteiro: os já famosos “autos de resistência” de negros, jovens e moradores de favelas em expressa maioria.
Mais de quatrocentas das cerca de mil favelas ocupadas pelas milícias, a recente modalidade de extorsão, opressão e violação regular dos moradores de favelas e que vem se tornando hegemônica na disputa entre as formas de delinqüência útil que atuam no Rio.
Outras mais de quatrocentas subordinadas ao poderio do decadente, mas também opressor e violador tráfico de drogas.
As políticas de ocupação permanente de favelas forçam através de suas práticas, em nome da ordem, uma permanente discussão, ainda que velada e à custa de vidas, sobre o que é permitido, o que fica legitimado fazer em tais espaços para diminuir o risco social e o perigo representado pela operação da delinqüência útil, o varejo do tráfico de drogas. Organizam apropriações de espaços físicos, simbólicos, discursivos e políticos.
As possibilidades de expressão política dos moradores das favelas ocupadas são limitadas ao ponto de se questionar se não está em construção o silêncio político forçado das populações que mais têm a reclamar. Conseqüência importante das políticas de violação e controle armado dos espaços pobres o não-conflito. O dificultar, senão o impedir da expressão coletiva das reivindicações políticas dos mais explorados.
Estas ações que em um primeiro olhar se configuram enquanto uma ofensiva articulada de substituição do controle pela força exercido pelo tráfico de drogas por um outro controle, também violento, estatal ou para-estatal, desarticulam a consolidação de conquistas políticas realizadas neste curto período histórico que vem desde o fim da ditadura militar brasileira em 1989, ano da primeira eleição direta para Presidente da República, até os dias atuais.
Conquistas expressas em direitos na Constituição de 1988, suspensos pontualmente em momentos em que a necessidade de se responder aos ditames da FIFA ou do COI supera em urgência e capacidade de formação de consenso as próprias crises, criadas ou não, em que excepcionais táticas são elaboradas e praticadas em nome do combate ao arriscado comércio de drogas e o perigo social que ele representa.
Esta hierarquia aqui pretendida em termos de capacidade de suspensão de direitos e de práticas excepcionais organiza de forma crescente as categorias risco, perigo, crise, Copa e Olimpíadas enquanto promotoras do avanço do Capital e legitimadoras de excepcionalidades na gestão neoliberal da cidade.
Corre-se aqui o risco de se estar criando perigosa crise política marcada para o período subseqüente aos Mega-eventos.
BIBLIOGRAFIA
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