03/11/2024

As formas e a vida. Ética e estética no jovem Lukács (1910-18)

Este trabalho é o resultado da Tese de Doutorado que defendi na Gesamthochschule-Universität Paderborn, na Alemanha Federal, em junho de 1997, sob a orientação dos professores Dr. Frank Benseler (Paderborn) e Dra. Christa Bürger (Frankfurt a/M). Seu objetivo é mostrar a significação do conceito de forma na concepção ética do jovem Lukács[3].
O jovem Lukács pretendeu formular, por meio do conceito de forma, uma ética além dos deveres. Logo me dei conta de que esta fundação ética do conceito de forma só pode vir à luz se estiver no primeiro plano a inseparável conexão com a forma literária – como a tragédia e a novela na coletânea de ensaios A alma e as formas (1911) e com o romance na Teoria do romance (1916). A conexão entre gênero formal [Gattungsform] e questões éticas, como o jovem Lukács a entendeu, só pode ser formulada como ensaio – pois não se pode falar de um sistema ético no jovem Lukács. O ensaio como forma vale como “gênero representativo” do jovem Lukács (Markus, 1977: 105)[4]. O modo provocativo de lidar com as contradições é um elemento formal determinante do ensaio: o ensaio é um experimento. 
No prefácio de A alma e as formas, “Sobre essência e forma do ensaio: carta a Leo Popper” (1910), Lukács fala sobre o ensaio como “estudos histórico-literários” (Lukács, 1971a: 7). Como tal ele é uma crítica científica que é caracterizada como gênero artístico: o ensaio é uma forma de arte. A forma do ensaio não se contrapõe imediatamente aos fatos, mas se relaciona com eles sempre através de mediações já elaboradas, por meio das formas. O objeto do ensaio já está dado: as formas. Como diz Lukács: “o ensaio fala sempre de algo já formado ou, no melhor dos casos, de algo já existente; é também da sua essência não extrair coisas novas a partir de um nada vazio, mas simplesmente daquelas que já foram vivas alguma vez, ordenando-as de novo. E apenas porque as ordena de novo, estando também ligado a elas não forma algo de novo a partir do disforme, deve sempre expressar a verdade sobre elas” (Ibid.: 20).
Outra característica importante do ensaio para Lukács é a ironia. A ironia é um instrumento reflexivo com o qual o ensaísta alcança uma “realidade da alma” [Seelenwirklichkeit]e se separa da vida cotidiana. Esta separação no entanto significa poder estabelecer a unidade daquilo que nesta vida está cindido: uma idéia que é vivida no instante [Augenblick]. A ironia está presente, sempre de formas diversas, em qualquer texto de um grande ensaísta. A ironia expressa a falta de base [Bodenlosigkeit] de uma tentativa que não possui a força de colocar a própria vida em movimento, para torná-la mais viva e dotada de sentido, em vez de apenas elucidar livros e imagens. É a exteriorização da nostalgia [Sehnsucht] de unidade e equilíbrio entre a vida tornada plena por meio da forma e a vida imediata. Mas a ironia é apenas uma idéia. “A ironia” – diz Lukács – “consiste em que o crítico está sempre falando sobre as questões últimas da vida, mas sempre também em um tom, como se o discurso tratasse apenas de imagens e livros, de ornamentos da grande vida, belos e sem essência; e que aqui não falasse também do mais profundo da interioridade, mas meramente de uma superfície bela e inútil” (Ibid.: 18-19). A tentativa do ensaísta é enquanto tal uma ironia: “assim como Saul, que saiu para procurar a mula de seu pai e encontrou um reino, o ensaísta, que está sempre à procura da verdade, encontra no fim de seu caminho uma meta não almejada, a vida”(Ibid.: 22).
Na Europa Central e sobretudo na Alemanha a forma do ensaio expressa uma visão peculiar. Uma visão que une Georg Simmel e o jovem Lukács, Karl Kraus e Robert Musil, Rudolf Kassner e Ernst Bloch, Siegfried Kracauer, Walter Benjamin e Theodor Adorno. Eles alcançaram, através desta forma de escrever, a especulação sobre objetos específicos e culturais já preformados: em Simmel como atenção para a “coisificação” [Sachlichkeit], para a sensibilidade “nervosa” da vida moderna nas metrópoles; em Kassner como crítica e platonismo; em Bloch como a configuração utópica da questão inconstruível; e posteriormente em Benjamin como imagem (surrealista) e como palco da experiência intelectual em Adorno – para não falar da crítica de Karl Kraus à fraseologia da imprensa e ao modo como Musil mescla diferentes discursos. A forma do ensaio já era conhecida e valorizada pelos românticos. Os diálogos de Platão e os escritos dos místicos, os ensaios de Montaigne e os diários imaginários e novelas de Kierkegaard são os exemplos tomados por Lukács da forma do ensaio. A particularidade de Lukács como ensaísta reside no modo como tenta fundar uma ética através do conceito de forma ou, dizendo com outras palavras, o projeto de uma fundação ética da forma como filosofia da ação.
O jovem Lukács quis escrever, durante o período da Primeira Guerra Mundial, um livro sobre Dostoiévski que ficou apenas na forma de anotações e projetos. Nas “Anotações sobre Dostoiévski”, apenas publicadas em meados dos anos oitenta[5], há determinadas passagens, nas quais aparece uma sagração do criminoso – do terrorista-revolucionário. A frase, “não se deve matar, mas é necessário”, é representativa do que queremos demonstrar. Lukács entremeia este tema com a forma literária, os exemplos são extraídos das obras de Schiller, Hebbel e Dostoiévski. Ao fazer isto, Lukács deixa ver o tendão de Aquiles de sua concepção ética: trata-se de uma martiriologia da ação revolucionária e de uma concepção elitista e estetizante da ética. Com esta ética, como ele mesmo afirma, “luciferina”, pretende superar a ética kantiana do dever e formular uma ética além da reificação, mas lhe falta para isto o instrumental teórico adequado – expressão, segundo Michael Löwy, do seu “anti-capitalismo romântico”[6]. O jovem Lukács está mais sob a influência da filosofia da existência de Kierkegaard do que da dialética histórica de Hegel. O conceito de “segunda ética” origina-se propriamente de Kierkegaard, como é discutido no capítulo final. Lukács quer esboçar nas “Anotações sobre Dostoiévski” uma “metafísica do socialismo”.
O leitor pode indagar, com razão: como se pode escrever sobre um livro que nunca foi concluído, que ficou apenas na forma de anotações e projetos? Na verdade, eu tive que encontrar uma forma para tal, que é muito simples: as “Anotações sobre Dostoiévski” não devem ser interpretadas separadamente nem dos conceitos da Teoria do romance nem tampouco da sua análise formal dos romances de Dostoiévski. Gênero formal e ética são simultâneos do ponto de vista de uma filosofia da história. Devem-se ouvir as vozes dos heróis de Dostoiévski para se compreender o esboço de interpretação de Lukács, mas deve-se ler também Kierkegaard, pois o jovem Lukács (e o maduro também!) faz de Dostoiévski um leitor de Kierkegaard[7]. No belo ensaio de 1967, “Elogio do século XIX”, pode-se ler: “O episódio do Grande Inquisidor mostra diretamente o abismo intransponível entre a relação de Jesus com a vida e a condução normal da vida de hoje. Aqui Dostoiévski está bem próximo de Kierkegaard”. Na Teoria do romance, Lukács desenvolve uma teoria do romance conclusiva que termina com uma formulação não ambígua e simples: não se trata mais de romances: “Dostoiévski não escreveu romance algum” (Lukács, 1994: 137). Tudo acaba em Dostoiévski.
Se as “Anotações sobre Dostoiévski” são uma continuação da Teoria do romance, as suas categorias internas são uma intensificação e uma superação da forma do romance – a hipótese funcionou para mim como um “abre-te Sésamo” e permitiu decifrar as passagens mais obscuras. Ferenc Fehér (1977: 241 a 327) tenta compreender a interpretação de Lukács dos romances de Dostoiévski como romance policial [Kriminalroman], Reiner Rochlitz (1983) como drama da graça [Gnadendrama]. Podem-se aferir ambas as possibilidades de interpretação nas “Anotações sobre Dostoiévski”. O jovem Lukács pretende, no entanto, interpretar os romances de Dostoiévski como um novo épos, apesar de deixar em aberto a questão da sua determinação como gênero formal. Pode-se dizer, além disso, que as “Anotações sobre Dostoiévski” mostram as dificuldades de Lukács em formular a sua hipótese (os romances de Dostoiévski como uma nova forma de épos).
O segundo capítulo deste trabalho começa com uma tipologia de ateus, isto é, como Lukács caracteriza os heróis de Dostoiévski. A seguir a atenção é dirigida para as categorias desta “nova” forma de épos, compreendendo-as como intensificação e superação da forma do romance. O que é importante é o modo como Lukács analisa a ação e o papel do diálogo como instauração de uma realidade “metafísica”. Por meio da ação é posta a “segunda” ética. Os heróis de Dostoiévski estão além do mundo das convenções. Eles abandonaram o inferno da “pecaminosidade completa” [vollendete Sündhaftigkeit] – como Lukács denomina o presente na Teoria do romance.  
O primeiro capítulo introduz as questões éticas no jovem Lukács, com as quais, através do conceito de forma, ele se ocupa até o fim: o ensaio sobre Kierkegaard, “O chocar da forma com a vida: Sören Kierkegaard e Regine Olsen” de A alma e as formas, o diálogo, “Da pobreza de espírito” (1912), são os escritos de Lukács que estão em primeiro plano para compreender a sua fundação ética do conceito de forma. Resumindo, o jovem Lukács se esforça por formular uma filosofia da ação coerente a qual deve estar em conexão com uma teoria da revolução.
 
Bibliografía
Adorno, “Der Essay als Form”. In: Noten zur Literatur I. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1981, pp. 9-33-
Fehér, F., “Am Scheideweg des romantischen Antikapitalismus”. En: Heller, 1977: 241-327.
Goldmann, L., “Georg Lukács: Der Essayst”. In: Matzner, J. (org), Lehrstück Lukács. Frankfurt a/M, 1974, 44-58.
Heller, A. et al., Die Seele und das Leben. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1977.
Löwy, M. Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires. L’évolution politique de Lukács (1909-1929). Paris: PUF, 1976.
Lukács, G., Die Seele und die Formen. Neuwied: Luchterhand, 1971 [1971a].
Lukács, G., “Lob des neunzehnten Jahrhundert”(1967). In: Essays über Realismus. Neuwied u. Berlin: Luchterhand, 1971 [1971b] [“O elogio do século XIX”. In Novos rumos nº8 e 9. São Paulo: Ed. Novos rumos, 1988.Trad. C. E. J. Machado].
—, Dostojewski Notizen und Entwürfe. J. C. Nyíri (org). Budapest: Akadémiai Kiadó, 1985.
—, Theorie des Romans. Ein geschichtsphilosophischer Versuch über die Formen der grossen Epik. München: DTV, 1994 (Ed. brasileira: Teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad.: J. M. M. Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000).
Márkus, G., “Die Seele und das Leben. Der junge Lukács und das Problem der ‘Kultur`”. En: Heller, 1977: 99-130.
Rochlitz, R, Le jeune Lukács. Théorie de la forme et philosophie de l´histoire. Paris:Gallimard, 1983.
 


Este texto serviu de base para minha ponencia no Coloquio Internacional Teoría Crítica y Marxismo Occidental: Bloch - Gramsci - Lukács - Adorno. Universidad de Buenos Aires, 20-23/10/2003- agradeço o financiamento da FUNDUNESP.
 
 
[3] Deste trabalho foi publicado o segundo capítulo, “Die zweite Ethik als Gestaltungsapriori eines neuen Epos. Das Buch über Dostojewski” in Benseler, F. u. Jung, W. (org) Lukács 1997. Jahrbuch der Internationalen Georg-Lukács-Gesellschaft. Bern: Peter Lang, 1998, pp. 73-116. A tese na íntegra traduzida para o português será publicada pela editora da UNESP- PROPP: As formas e a vida. Ética e estética no jovem Lukács (1910-18). São Paulo: Ed. UNESP, 2003 (no prelo).
[4] Após a Segunda Guerra Mundial a recepção ocidental do jovem Lukács começa com os ensaios de Lucien Goldmann (1950) (in Matzner, 1974: 44-58) e Adorno (1958) (Adorno, 1981: 9-33).
[5] Lukács, 1985.
[6] Refiro-me ao trabalho (Tese) pioneiro de Löwy, 1976.
[7] Lukács, 1971b: 661 [1988: 11].

 

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