26/07/2024

Karel Kosik e a crítica das concepções reificadas do mundo da pseudoconcreticidade: sobre o retorno ao projeto de crítica da economia política na Dialética do concreto

Por

 

Pedro Leão da Costa Neto
UTP
 
A história do marxismo no século XX está marcada por dois grandes momentos de intenso desenvolvimento teórico, momentos estes associados a importantes acontecimentos históricos que desencadearam uma profunda crise no interior das duas grandes formações teóricas, então, hegemônicas no interior do pensamento marxista - o marxismo da II Internacional e a “síntese filosófica marxista-leninista”. Estes dois momentos se caracterizaram por uma profunda reflexão sobre a teoria marxista, sobre suas relações com a tradição teórica passada, como também, por uma tentativa de elaborar um diálogo crítico e fecundo com as diferentes concepções teóricas burguesas, no intuito de superar o nível teórico alcançado por estas últimas.
O primeiro momento é resultante da vitória da Revolução Russa e da definitiva falência do marxismo da II Internacional (em particular das elaborações de Kautsky e Plekhánov). A falência da II Internacional, já tinha desencadeado um período de intensa elaboração teórico-política, cujas primeiras manifestações já podemos identificar nos inéditos Cadernos Filosóficos de Lenin: “1) Plekhánov critica o kantismo (e o agnosticismo em geral) mais de um ponto de vista materialista vulgar que materialista dialético [...]. 2) Os marxistas criticaram (no início do século XX) os kantianos e os humistas mais à maneira de Feuerbach (e de Büchner) do que à de Hegel” (Lénine, 1989: 163)”.E acrescenta algumas linhas abaixo: “Não é possível compreender plenamente “O Capital”de Marx e particularmente o seu I capítulo sem ter estudado a fundo e sem ter compreendido toda a Lógica de Hegel. Por conseguinte, 1/2 século depois nenhum marxista compreendeu de Marx!!” (Lénine, 1989, 164).
Entretanto, as criticas mais sistemáticas endereçadas a tradição do marxismo da II Internacional partiram, por um lado, das obras de György Lukács, Antonio Gramsci, Karl Korsch e por outro lado, dos intensos debates teóricos realizados nos anos 1920 na URSS (debate entre dialéticos e mecanicistas, as obras do economista Isaak Illich Rubin e do teórico do direito Evgeni Pachukanis).
O segundo momento foi desencadeado pela leitura do relatório de Kruschev frente ao XX Congresso do PCUS (Sobre o culto à personalidade e suas consequências) e o subsequente processo de desestalinização, que levou tanto na Europa Ocidental, como na Europa Oriental, a elaboração das mais diversas criticas à “mero especial de nda naturezalos destas cro relatsíntese filosófica oficial” e abriram intensos debates na França, na Itália e em diferentes países da Europa Oriental. Em um primeiro momento, surgiram diferentes concepções, que se caracterizaram por uma aproximação, ou mesmo, por uma capitulação frente as correntes filosóficas hegemônicas no ocidente (o neo-positivismo e o existencialismo). Na Europa Oriental, podemos destacar, as diferentes elaborações teóricas que rapidamente conduziram ao surgimento de tendências filosóficas autônomas, como, por exemplo, na Polônia, as tendências dos filósofos científicos (scientific philosophers)e dos filósofos antropológicos (antropological philosophers), que procuravam, respectivamente, combinar o marxismo com o neo-positivismo e com o existencialismo (Krajewski, 1966: XIV-XIX). Entretanto, como observam Wacław Mejbaum e Aleksandra Żukrowska (1985: 250-256), estas duas correntes gradualmente se distanciaram tanto do materialismo dialético como do materialismo histórico, abandonando todo projeto de reconstrução e elaboração de uma filosofia marxista. Na Europa Ocidental encontraram grande difusão as diferentes versões do “humanismo socialista” e de retorno ao “jovem Marx” (importantes exemplos destes debates são a coletânea de Erich Fromm (1984) dedicado ao Humanismo Socialista e o número especial dedicado ao jovem Marx da revista Recherches Internationales a la lumière du marxisme (1960)). Entretanto, ao lado destas correntes, que muitas vezes se caracterizaram por um ecletismo teórico, apareceram igualmente, concepções que procuraram repensar de forma radical e sistemática o pensamento de Marx, a sua relação com as diferentes tradições teóricas, tanto com o patrimônio teórico pré-marxista como marxista, como também com as grandes correntes teóricas contemporâneas. Exemplos, destes grandes esforços reflexivos de superação do dogmatismo são, entre outros: o pensamento de Althusser e da sua escola na França, a reflexão de Galvano dela Volpe[1] e da sua escola (entre os quais se destacaram, entre outros, Lucio Colletti e o economista Giulio Pietranera) e de Cesare Luporini na Itália, Evald Ilienkov na URSS, György Lukács na Hungria, Karel Kosik e Jindřich Zelený na Tchecoslováquia, para nos determos apenas nos nomes mais expressivos. É importante destacar, que entre estas elaborações teóricas, as reflexões de Althusser, de Pietranera, de Ilienkov, de Zelený e de Kosik passavam, partindo de perspectivas diversas, por uma tentativa releitura de O Capital.
O significado do retorno ao projeto de “Crítica da Economia Política” e a sua importância para o desenvolvimento da teoria de Marx e da tradição marxista sucessiva, foi ressaltado claramente pelo filósofo polonês e professor da Universidade de Varsóvia Marek Siemek:   
 
[...] A dialética marxista é par excellence leitura: arte de ler e ao mesmo tempo a própria leitura, construção da pluralidade de signos na totalidade visível de um “texto”. Somente que, este texto particular, que a dialética tenta reconstruir, não é “escrito” apenas nas próprias criações semânticas (palavras, sinais, significados), mas em unidades mais amplas e mais primordiais: nas relações criadoras de sentido, nas quais a semântica imediata dos “sentidos” está sempre inscrita na ontologia da sua realidade histórica. “Lê-se” aqui não apenas a palavra, o significado, o logos – mas, as condições prévias, pré-lógicas e pré-semânticas da unidade das palavras e das coisas, dos significados e de seus objetos, do logos e da práxis. A leitura do texto é aqui sempre a revelação do seu contra-texto – ou seja, suas formas históricas de objetividade, a partir das quais dado texto se desenvolve, mas que por isso mesmo omite e silencia, ou seja, que com o seu próprio discurso literalmente encobre. Assim Marx leu os economistas ingleses e os escritos filosóficos de Hegel, assim Lênin leu os narodnik e Plekhánov, Gramsci Croce, Lukács os teóricos revisionistas da II Internacional, e Brecht os enunciados propagandísticos dos ideólogos do fascismo. Interpretação e crítica são aqui inseparáveis: juntas e somente juntas, formam o inseparável ato de entendimento, no qual a desmistificação dos significados é ao mesmo tempo penetração na estrutura fetichizada que encobre as formas de objetividade (Siemek, 1982: 77).
 
Não seria, portanto, arbitrário estender estas mesmas palavras para caracterizar o projeto teórico desenvolvido por Karel Kosik[2] em seu livro Dialética do Concreto (Kosík, 1965; Kosík, 1967; Kosik, 1969)[3], uma vez que uma das suas características mais destacadas, é justamente de elaborar uma crítica das diferentes concepções teóricas que se desenvolveram desde os finais do século XIX – entre as quais – podemos destacar, a fenomenologia de Husserl e Heidegger, a teoria do “homo oeconomicus”, a teoria dos fatores, assim como de diferentes leituras reducionistas da obra de Marx. O objetivo da presente comunicação, é justamente, problematizar as relações entre economia e filosofia desenvolvida por Kosik em sua obra anteriormente citada. A problematização das relações entre filosofia e economia, nos permitirá destacar a importância central da retomada do projeto de “crítica da economia política”, tanto para a análise da obra de Marx, como também para a elaboração de uma critica, do que o filósofo tcheco chama de concepções reificadas do mundo da pseudoconcreticidade.
Uma análise da estrutura do livro Dialética do Concreto nos permitirá compreender o lugar central atribuído por Kosik às relações entre filosofia e economia no livro em questão. Dividido em quatro capítulos, o I: “Dialética da Totalidade Concreta” no qual apresenta os aspectos teóricos e conceituais do programa teórico de compreensão e destruição do mundo da pseudoconcreticidade, analisando, em particular, os conceitos de totalidade e práxis, os dois capítulos sucessivos estão articulados em torno das relações entre filosofia e economia, no capítulo II “Economia e Filosofia” desenvolve um conjunto de críticas aos conceitos de Sorge, homo oeconomicus e fator econômico, como exemplos de típicas concepções reificadas do mundo da pseudoconcreticidade, no capítulo III “Filosofia e Economia” Kosik procura retornar aos fundamentos teóricos do projeto marxista, partindo de uma leitura de O Capital, e por fim, o seu IV e último capítulo “Práxis e Totalidade” é dedicado a uma tentativa de sistematização dos conceitos de totalidade, práxis, trabalho para compreensão do homem.
 Karel Kosik desde o início do seu livro avança um conjunto de pressupostos que vão desempenhar um importante lugar no desenvolvimento da sua obra, a centralidade dos conceitos de totalidade e práxis, e a afirmação que a primeira atitude do homem em relação à realidade é uma atitude prática. Kosik inicia o seu livro observando: “A dialética trata da ‘coisa mesma’. Mas a ‘coisa mesma’ não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um desvio” (Kosík, 1965: 10; Kosík, 1967: 25; Kosik, 1969: 09). E, partindo da distinção inicial entre forma fenomênica da realidade e coisa mesma, Kosik introduzirá uma série de outras distinções correlatas: entre representação e conceito da coisa, entre o mundo da pseudoconcreticidade e totalidade concreta, entre duas formas de conhecimento da realidade - a falsa consciência e a compreensão real da coisa. Da mesma forma, o conceito de práxis é pensado no interior desta mesma distinção: “o mundo do tráfico e da manipulação” – “a práxis fetichizada dos homens” e a “práxis crítica revolucionaria da humanidade” (Kosík, 1965: 11; Kosík, 1967: 27; Kosik, 1969: 11). Para Kosik, a distinção entre essência e mundo fenomênico, constitui uma distinção central de toda tradição do pensamento filosófico:
 
O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e ‘a coisa mesma’ constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As diversas tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a ‘coisa mesma’, o ser da coisa, não se manifesta direta e imediatamente (Kosík, 1965: 13; Kosík, 1967: 30; Kosik, 1969: 13-14).
 
É no interior deste campo conceitual que a proposta de crítica e destruição da pseudoconcreticidade assume uma importância decisiva:
 
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A ele pertencem:
            - o mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais;
            - o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade);
            - o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento;
            - o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultado da atividade social dos homens (Kosík, 1965: 11; Kosík, 1967: 27; Kosik, 1969: 11).
 
Após enumerar os distintos fenômenos que constituem o mundo da pseudoconcreticidade, Kosik, algumas páginas adiante, apresenta a possibilidade de destruição deste mundo fetichizado através da práxis revolucionária dos homens:
 
Entretanto, a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que o mundo possa ser explicado ‘criticamente’, cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da ‘práxis’ revolucionária (Kosík, 1965: 16; Kosík, 1967: 35; Kosik, 1969: 18).[4]      
 
Ao lado da importância atribuída por Kosik aos conceitos de totalidade e práxis, outra ideia decisiva para o desenvolvimento da argumentação de kosikiana, é o pressuposto do primado da atitude prática homem em relação à realidade:
 
A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um sujeito abstrato cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um conjunto determinado de relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo polo oposto e complementar seja justamente o sujeito abstrato cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade (Kosík, 1965: 10; Kosík, 1967: 25; Kosik, 1969: 9-10).
           
Algumas páginas adiante, Kosik estabelecerá a estreita relação existente entre estes pressupostos teóricos de sua obra e o seu alcance crítico:
 
Cada objeto percebido, observado ou elaborado pelo homem é parte de um todo, e precisamente este todo não percebido explicitamente é a luz que ilumina e revela o objeto singular, observado em sua singularidade e no seu significado. A consciência humana deve ser, pois, considerada tanto no seu aspecto teórico-predicativo, na forma do conhecimento explícito, justificado, racional e teórico, como também no seu aspecto antepredicativo, totalmente intuitivo. A consciência é constituída da unidade de duas formas que se interpenetram e influenciam reciprocamente, porque, na sua unidade, elas se baseiam na práxis objetiva e na apropriação prático-espiritual do mundo. A recusa e a subestimação da primeira forma conduzem ai irracionalismo [...]; à recusa e a subestimação da segunda forma conduzem ao racionalismo, ao positivismo e ao cientificismo, os quais, em sua unilateralidade, determinam o irracionalismo como complemento necessário (Kosík, 1965: 21-22; Kosík, 1967: 43-44; Kosik, 1969: 25-26).[5]
 
Após a exposição destes conceitos preliminares em seu primeiro capítulo, no capítulo seguinte, como já observamos acima, Kosik desenvolverá um conjunto de críticas a diferentes concepções reificadas da Filosofia e das Ciências Humanas, procurando demonstrar a indissociável relação entre estas teorias e as formas sociais de objetivação assumidas pelo modo de produção capitalista. Kosik observa, por exemplo, referindo-se a diferentes concepções filosóficas vigentes:  “Para a filosofia contemporânea, é importante conseguir distinguir – por detrás da variada, obscura e muitas vezes mistificadora terminologia de cada escola e tendência – o real problema central e o conteúdo dos conceitos” (Kosík, 1965: 32; Kosík, 1967: 59-60; Kosik, 1969: 39).[6]
Um importante exemplo ilustrativo, desta articulação entre o desenvolvimento do pensamento filosófico e as transformações nas formas de objetivação social, é a passagem na qual, nosso autor, aproxima criticamente o conceito de cura (Sorge) em Heidegger e o conceito de trabalho em Hegel:
 
A medida que se constata que a categoria do trabalho da filosofia clássica alemã foi substituída, no séc. XX, pelo mero ocupar-se (obstarávání) – metamorfose em que se percebe o processo de dissolução que caracteriza a passagem do idealismo objetivo de Hegel ao idealismo subjetivo de Heidegger – nessa constatação é fixado um determinado aspecto fenomênico do processo histórico. A substituição do “trabalho” pela ‘ocupação’ (obstarávání) não reflete uma particularidade de pensamento de um único filósofo ou da filosofia em geral, mas exprime de certa maneira modificações da própria realidade objetiva (Kosík, 1965: 49; Kosík, 1967: 85-86; Kosik, 1969: 63).
 
Kosik observa, analogamente, que uma relação entre pensamento conceitual e formas sociais de objetivação se manifesta no conceito reificado de “homo oeconomicus”, que segundo nosso autor, expressaria a passagem da economia política clássica à economia vulgar:
 
A passagem do homem como ‘cura’ (starost) ao ‘homem econômico’ não constitui uma simples mudança de ponto de vista. O problema não está no fato de que, no primeiro caso, o homem é visto como subjetividade que nada sabe da objetividade das conexões sociais, ao passo que, no segundo caso, este mesmo homem é examinado do ponto de vista das conexões supra-individuais. O problema principal está noutro ponto. Com a aparente mudança na argumentação e no ponto de vista muda-se também o próprio objeto da análise e a realidade objetiva se transforma na realidade objetual, a realidade dos objetos. [...] Com o aparente deslocamento do ponto de vista, o homem é transformado em objeto. [...] Aeconomia vulgar é a ideologia do mundo objetual. Ela não investiga suas conexões e leis internas; sistematiza as representações que os agentes deste mundo objetual, isto é, os homens reduzidos a objeto, tem de si próprios, do mundo da economia. A economia clássica se move do mesmo modo na realidade objetual, mas não sistematiza as representações do mundo formulada pelos agentes, ela procura as leis desse mundo reificado (Kosík, 1965: 65-66; Kosík, 1967: 111-112; Kosik: 1969, 87).
 
Semelhante exemplo, desta mesma articulação entre pensamento e formas de objetivação social, é oferecida por Kosik quando ele desenvolve a sua  crítica da ideologia dos fatores. Neste sentido, nosso autor, observa:
 
O fato originário e decisivo não consiste na insuficiência do pensamento científico ou no seu aspecto limitado e unilateralmente analítico, mas na decadência da existência social, na autonomização da sociedade capitalista. Os fatores não são originariamente um produto do pensamento ou da investigação científica; são determinadas formas históricas de desenvolvimento, nas quais as criações da atividade social do homem adquirem autonomia e sob esse aspecto se tornam fatores e se transferem à consciência acrítica como forças autônomas, independentes do homem e da sua atividade (Kosík, 1965: 75; Kosík, 1967: 126; Kosik, 1969: 100).
 
As considerações críticas endereçadas a teoria dos fatores e do fator econômico permitirão Kosik realizar, igualmente, uma crítica ao materialismo vulgar em suas diferentes formas de manifestação: “Na história das teorias sociais podem-se citar dezenas de nomes [...] para os quais a economia assume este oculto caráter autônomo. São os ideólogos do ‘fator econômico’. Desejamos insistir em que a filosofia materialista nada tem a ver com a ‘ideologia do fator econômico’” (Kosík, 1965: 84; Kosík, 1967: 139; Kosik, 1969: 111).
E na sequência, nosso autor dissocia o marxismo do materialismo mecânico que reduzia arbitrariamente a consciência social ao ser social:
 
O marxismo não é um materialismo mecânico que pretende reduzir a consciência social, a filosofia e a arte a ‘condições econômicas’ e cuja atividade analítica se fundamenta, por isso, no desmascaramento do núcleo terreno das formas espirituais. Ao contrário, a dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, ideias correspondentes e todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido (Kosík, 1965: 84; Kosík, 1967: 139; Kosik, 1969: 111).[7]
 
Retomando e concluindo, este conjunto de críticas endereçadas as diferentes concepções reificadas do mundo da pseudoconcreticidade (cura, homo oeconomicus e de fator econômico), Kosik afirma: “A análise crítica demonstrou que os vários aspectos reificados da economia são momentos reais da realidade; demonstrou, ainda, que esses momentos reificados são fixados nas teorias ou nas ideologias, e se manifestam como ‘cura’ (starost), ‘homo oeconomicus’ e ‘fator econômico’ nas várias etapas do desenvolvimento intelectual” (Kosík, 1965, 128; Kosík, 1967: 205;  Kosik, 1969, 169).
Após termos analisado, o conjunto de críticas desenvolvidas por Kosik, as diferentes formas fetichizadas do mundo da pseudoconcreticidade – objeto da nossa comunicação - podemos agora passar, de maneira sucinta  aos principais temas desenvolvidos por nosso autor no capítulo III, no qual é retomado o projeto teórico de crítica a economia política de Marx e as diferentes interpretações dadas a este importante problema teórico.[8]
Kosik inicia o capítulo III, realizando uma análise da “problemática de O Capital de Marx”, desenvolvendo uma série de observações sobre, a recepção e interpretação desta obra. Para o filósofo tcheco: “A história do texto em certo sentido é a história da sua interpretação” (Kosík, 1965, 107; Kosík, 1967: 173; Kosik, 1969, 141). E acrescenta algumas páginas depois: “A história da interpretação de ‘O Capital’ de Marx demonstra que por trás de toda interpretação se oculta uma ou outra concepção de filosofia, da ciência, do real, da relação entre filosofia e economia etc., a cuja luz se realiza tanto a interpretação dos conceitos e intuições isolados quanto a da estrutura e conjunto da obra” (Kosík, 1965: 108-109; Kosík, 1967: 175; Kosik, 1969: 143).
Kosik mostra igualmente a forte tendência presente, em inúmeros comentadores, de realizar uma separação entre ciência e filosofia, entre concepção lógica e conteúdo econômico. Aliás, para o nosso filósofo, esta mesma relação de exterioridade entre economia e filosofia caracterizaria muitas das posições que marcaram outro importante debate desenvolvido naquele momento: o debate em torno “do desenvolvimento espiritual de Marx”, da relação entre O Capital e o jovem Marx e do problema da realização e liquidação da filosofia. (Kosík, 1965: 113-114; Kosík, 1967: 181-182; Kosik, 1969: 149). 
Após este conjunto de observações preliminares, Kosik dedica um inteiro sub-capítulo, a análise da problemática da “Estrutura de ‘O Capital’” (Kosík, 1965: 121-128; Kosík, 1967: 193-203; Kosik, 1969: 159-168); procurando responder, entre outras, a duas questões: “qual é a relação entre a estrutura imanente de “O Capital” e a sua configuração exterior? Qual é a conexão entre o princípio estrutural e a sua expressão literária? (Kosík, 1965: 122; Kosík, 1967: 194; Kosik, 1969: 160). Após discutir algumas das diferentes tentativas de aproximar O Capital, ora, da Ciência da Lógica, ora, da Fenomenologia da Espírito, Kosik comparará a estrutura da obra de Marx, à odisséia, ao “romance de formação”, ao Bildungsroman: “O conhecimento do sujeito só é possível na base da atividade do próprio sujeito sobre o mundo; o sujeito só conhece o mundo na proporção em que nele intervém ativamente, e só conhece a si mesmo mediante uma ativa transformação do mundo” (Kosík, 1965: 126; Kosík, 1967: 200; Kosik, 1969: 165). E enumera, algumas linhas abaixo, diferentes formas de manifestação do “romance de formação”: “A ‘história de um coração humano’ de Rousseau (‘Emílio ou Da Educação’) o Bildungsroman alemão na clássica versão do ‘Wilhelm Meister’ de Goethe ou na versão romântica do ‘Heinrich von Ofterdingen’ de Novalis, a ‘Fenomenologia do Espírito’ de Hegel e ‘O Capital’ de Marx são exemplos do motivo da ‘odisséia’ nos vários campos da criação cultural” (Kosík, 1965: 126; Kosík, 1967: 200-201; Kosik, 1969: 166).
 Concluindo, este conjunto de observações sobre a estrutura da referida obra de Marx e a forma de diferentes obras literárias e filosóficas dos século XVIII – XIX, Kosik compara a estrutura de O Capital associa a Fenomenologia do Espírito de Hegel:
 
Se a ‘Fenomenologia do Espírito’ é a ‘viagem da consciência natural que atinge à verdadeira ciência’ ou a ‘viagem da alma que atravessa a série das suas formas como uma série de etapas’, a fim de que ‘com plena consciência de si mesma’, alcançar o ‘conhecimento daquilo que ela é por si mesma’, então ‘O Capital’se manifesta como ‘a odisséia’ da práxis histórica concreta, a qual passa do seu elementar produto de trabalho através de uma série de formas reais, nas quais a atividade prático-espiritual dos homens é objetivada e fixada na produção, e termina a sua peregrinação não com o conhecimento daquilo que ela é por si mesma, mas como a ação prático-revolucionária que se fundamenta neste conhecimento (Kosík, 1965: 127; Kosík, 1967: 201; Kosik, 1969: 166).
 
O Capital representa, portanto, para Kosik uma descrição do sistema capitalista, que parte da sua forma elementar – a Mercadoria – para alcançar a compreensão da totalidade e a sua crítica. Concluindo o seu raciocínio observa:“O conhecimento ou a tomada de consciência da natureza do próprio sistema, como sistema de exploração, é condição necessáriapara que a odisséia da forma histórica da práxis chegue a termo na práxis revolucionaria” (Kosík, 1965: 128; Kosík, 1967: 203; Kosik, 1969: 168).
Após ter problematizado, nos capítulos II e III, as distintas relações entre economia e filosofia, analisando as formas reificadas do mundo da pseudoconcreticidade e a estrutura de O Capital de Marx, Kosik retornará em seu capítulo IV: ‘Práxis’ e Totalidade, mais uma vez aos seus conceitos iniciais, que o permitiram pensar a “relação do homem com o mundo”. E concluí o seu livro, como bem observou Viana (2007: 80), retornando suas palavras iniciais:
 
A dialética trata da ‘coisa mesma’. Mas a ‘coisa mesma’ não é uma coisa qualquer, e na verdade, não é nem mesmo uma coisa: a “coisa mesma”, de que trata a filosofia, é o homem e o seu lugar no universo, ou (o que em outras palavras exprime a mesma coisa): a totalidade do mundo revelada pelo homem na história e o homem que existe na totalidade do mundo (Kosík, 1965, 173; Kosík, 1967: 268-269;  Kosik, 1969: 230).
 
Tomando por objeto de nossa análise, um aspecto da obra de Karel Kosik, procuramos contribuir dentro das nossas possibilidades, a retomar um dos altos momentos alcançados pela tradição marxista, e que hoje, ao lado de inúmeras outras significativas contribuições, encontra-se injustamente esquecida.
 
 
Referências bibliográficas
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Fromm, Erich (Org.), Humanismo Socialista. 2a ed., Tradução de Eduardo Goligorsky. Paidos: Barcelona, 1984.
Cesana, Linda e Preve, Costanzo, Filosofia dela verità e dela giustizia Il pensiero di Karel Kosik. Petite Plaisance: Pistoia, 2012.
Kosík, Karel, Dialektika Konkrétního Studie o problematice člověka a světa. 2aed.Českolovenské Akademie Věd: Praga, 1965.
Kosík, Karel, Dialectica de lo Concreto (Estudio sobre los problemas del hombre y el mundo). Tradução e Prólogo de Adolfo Sanchez Vasquez.  Grijalbo: México, 1967.  
Kosik, Karel, Dialética do Concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1969.
Krajewski, Władyslaw, “Introduction: Polish Philosophy of Sciences”. En: Krajewski, Władyslaw (Org.), Polish essays in the philosophy of the Natural Sciences. D. Reidel: Dordrecht, 1966.
Lénine, V. I., “Conspecto do livro de Hegel “Ciência da Lógica””. En: Lénine, V. I. Obras Escolhidas. Vol. 6 (Cadernos Filosóficos). Tradução de José Barata-Moura, José Oliveira e António Pescada. Editorial Avante/Progresso: Lisboa/Moscou, 1989, págs. 89-212.
Lima, Rafael Lucas de, Sobre o Conceito de Pseudoconcreticidade em Karel Kosik. Dissertação de Mestrado apresentada a Universidade Feral do Rio Grande do Norte. Natal, 2011.
Marx, Karl, O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I, Volume I. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1968.
Marx, Karl, “Teses contra Feuerbach”. En. Marx, Os Pensadores. Tradução José Arthur Giannotti. Abril: São Paulo, 1974.
Mejbaum, Wacław e Żukrowska, Aleksandra, Literat Cywilizowanego Świata. Leszek Kołakowski a kryzys myśli mieszczańskiej. Ksiązka i Wiedza: Varsóvia, 1985.
Siemek, Marek J., “Marksizm a tradycja hermeneutyczna”. En: Siemek, Marek J., Filozofia, Dialektyka, Rzeczywistość. PIW: Varsóvia, 1982, págs 76-103.
“Sur le Jeune Marx”.  Recherches Internationales a la lumière du marxisme, Paris, no. 1, 1960.
Vettraino, Claudio Valerio, Bisogno, Dialettica e Totalità Confronto tra Agnes Heller e Karel Kosik. Aracne: Roma, 2010. 
Viana, Nildo, “Os limites do marxismo fenomenológico de Karel Kosik”. En: Viana, Nildo, O fim do marxismo e outros ensaios. Giz editorial: São Paulo, 2007, págs. 79-94.
 
 
 
 
 
 
 
 


[1] Como observa John Fraser (1979: 18), apesar do livro de Galvano Della Volpe Logica come scienza positiva ter sido publicado em 1950, o seu impacto teórico só será sucessivo a 1956, ano, aliás, da segunda edição da obra.
[2] É importante destacar, que após anos de relativo esquecimento, a obra de Karel Kosik, vem sendo objeto de análise; como indicativo deste interesse – se restringindo as línguas latinas – podemos citar o artigo de Nildo Viana (2007: 79-94); a dissertação de mestrado de Rafael Lucas de Lima (2011); e os livros de Claudio Valerio Vettraio (2010) e Linda Cesana e Costanzo Preve (2012).
[3] Em nossas referências, as primeiras referências remetem à edição tcheca, as segundas a versão espanhola e as últimas a tradução brasileira. Como é sabido a versão espanhola do livro de Kosik foi realizada pelo destacado marxista mexicano Adolfo Sanchez Vasquez (1967).
[4] É importante aqui lembrar que a crítica do mundo da pseudoconcreticidade e a possibilidade da sua destruição é uma questão que perpassa o livro de Kosik.
[5] É importante sublinhar, que apesar de Kosik em suas inúmeras passagens afirmar que os conceitos de totalidade e práxis, não devem ser entendidos apenas em seu aspecto metodológico, portanto, de uma forma unilateral, esta compreensão redutiva foi em muitos momentos a leitura hegemônica de sua obra, leitura esta que levava ao esquecimento que estes conceitos deveriam ser entendidos em sua unidade ontológica e gnosiológica.
[6] Referindo-se a fenomenologia, por exemplo, Kosik observa: “Os problemas estudados pela fenomenologia sob a denominação de ‘intencionalidade para com alguma coisa’, ‘intenção significativa para com alguma coisa’ ou então de vários ‘modos de percepção’ foram justificados por Marx sobre pressupostos materialistas, como diversos aspectos de apropriação do mundo pelos homens: o prático-espiritual, o teórico, o artístico, o religioso, mas também o matemático, físico e semelhantes” (Kosík, 1965:19-20; Kosík, 1967: 40-41; Kosik, 1969: 23). Aliás um dos momentos centrais de seu livro será justamente as críticas que endereçará a concepção de cura (Sorge), no qual retoma indicações desenvolvidas por Günther Anders em sua crítica contundente à filosofia de Heidegger desenvolvida no livro: On the pseudo-concreteness of Heidegger’s Philosophy publicado originariamente em1948. (Anders, 2003).
[7] Neste parágrafo a referência a diferentes passagens da obra de Marx é evidente. Remetemos o leitor, tanto, as Teses sobre Feuerbach (Marx, 1974: 57-59), como a decisiva nota metodológica desenvolvida por Marx em O Capital: “Em realidade, é muito mais fácil descobrir o cerne terreno das nebulosas representações religiosas, analisando-as, do que, seguindo o caminho oposto, descobrir, partindo das relações da vida real, as formas celestiais correspondentes a essas relações. Este último é o único método materialista e, portanto científico.” (Marx, 1968: 425).
[8] É importante destacar que a obra de Kosik se destaca pela utilização de uma série de obras de Marx, até então, pouco utilizadas na bibliografia marxista como, por exemplo, a ampla utilização dos Grundrisse, da 1a edição de O Capital de 1867 e das Notas Marginais sobre Wagner. Igualmente relevantes são as referências a diferentes autores da tradição marxista.

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