“A todo momento, vocês supõem um outro momento
seguinte que não aquele que aconteceu: a todo presente
imaginário em que se colocam, imaginam um outro futuro
que não aquele que se realizou” (Paul Valery, “Discurso
sobre a história”, 2007, p.114).
Resumo: Recém falecido em Paris, em janeiro de 2010, Daniel Bensaïd é, sem duvida, um dos principais nomes da esquerda intelectual francesa contemporânea. Em toda sua trajetória intelectual e política, o filósofo nascido em Toulouse estabeleceu um amplo espectro de interlocutores. Particularmente nas duas últimas décadas, Bensaïd dedicou-se – apoiando-se nas reflexões de Gramsci e, sobretudo, de Walter Benjamin - à reflexão sobre a política como campo de possibilidades para a reabertura concreta da história. O objetivo deste artigo é exatamente sistematizar, de forma introdutória, as implicações teóricas desta recuperação contemporânea – levada a cabo por Bensaïd - das reflexões de Gramsci e de Benjamin, cujas obras não são puramente instrumentalizadas a fim de serem utilizadas em investigações acadêmicas específicas, mas sim tomadas como ponto de partida para uma releitura criativa do marxismo, que almeja reforçar a relevância da práxis humana - e, por conseguinte, da política em sentido amplo -, na constituição da história.
Palavras-chave: teoria política marxista; Gramsci; Benjamin; Daniel Bensaïd.
Retorno ao presente: Gramsci e Benjamin na obra de Daniel Bensaïd
Sem dúvida, Daniel Bensaïd era, até sua recente morte em janeiro de 2010, um dos principais nomes da esquerda intelectual francesa contemporânea. De origem argelina e judaica, mas nascido em Toulouse, na França, Bensaïd encontrou em Paris os ecos da “capital das revoluções”, do sonho e do despertar benjaminiano do século XIX ao “maio de 68” em que desempenhou papel destacado, como estudante na Universidade de Nanterre – onde eclodiu a revolta – e militante da então Juventude Comunista Revolucionária (JCR). Não por acaso, desde meados dos anos 1960 até seu falecimento, a trajetória de Bensaïd confunde-se parcialmente com o itinerário de uma tradição específica da esquerda revolucionária (radicalmente anti-stalinista) francesa e internacional. Após ingressar no Partido Comunista Francês (PCF), em 1962, com apenas 16 anos, e dele ser expulso três anos depois, participa ativamente, no final dos anos 60, da fundação da Liga Comunista (LC) - que após 1973 seria doravante denominada Liga Comunista Revolucionária (LCR), seção francesa da IV Internacional. Mais recentemente, já com as limitações que a vida – e seus males que aceleram a deterioração física – lhe impôs, não hesitou em contribuir diretamente para a formação do Nouveau Parti Anticapitaliste (NPA), organização cujo objetivo é ampliar o escopo do debate plural entre correntes diversas da esquerda política francesa contemporânea, a partir da crítica aos lastros da cultura política stalinista, com seu “despotismo à esquerda”.
Filósofo de formação, ex-aluno de Henri Lefebvre – com o qual fez sua tese de mestrado, sobre a crise revolucionária em Lênin -, Bensaïd é detentor de uma vasta obra teórica, que abarca um amplo espectro de interlocutores, desde os “clássicos” Marx, Lênin, Rosa Luxemburgo, Lukács, Gramsci, passando pelos “heréticos” Walter Benjamin, Charles Peguy, Auguste Blanqui, Ernst Bloch, por Pascal, Hannah Arendt, Derrida, E. P. Thompson, Ernest Mandel e Michael Löwy, dentre vários outros. Mas, dentre este conjunto de interlocutores, há dois em especial que serviram como referência fundamental aos últimos trabalhos de Bensaïd: o filósofo italiano Antonio Gramsci e o ensaísta alemão Walter Benjamin. E a razão, isto é, o motivo fundamental destas presenças intempestivas é inequívoco: “Seus destinos trágicos de
outsiders permitiram-lhes ouvir o que permanecia inaudível para a maioria dos discípulos declarados, cheios de pressa em traduzir as palavras insólitas de Marx numa linguagem familiar, que é forçosamente a da ideologia dominante” (Bensaïd, 1999, p.15). Signos da derrota – o que lhes fazia escapar de qualquer otimismo
triunfalista -, Gramsci e Benjamin movem-se num terreno singular, geralmente menosprezado pelo marxismo oficial: “contra o culto sonolento do progresso e suas promessas quase sempre ilusórias, ambos vão ao encontro de Marx por caminhos notavelmente convergentes, árduos e pouco freqüentados” (Bensaïd, 1999, p.15, 16)
[2].
E, se o momento é particularmente profícuo às reinterpretações, Gramsci e Benjamin podem – na opinião de Bensaïd - fornecer elementos para uma atualização crítica do marxismo. Em suas palavras: “A derrocada dos regimes burocráticos oferece hoje a oportunidade de reler Marx, derrubando o muro desse ‘marxismo’ petrificado em ideologia, cuja ortodoxia constituiu-se em boa parte na ignorância do seu pensamento” (Bensaïd, 1999, p.23). Pois, “quando se remove a crosta das ortodoxias, a hora é propícia para o despertar de virtualidades há muito desprezadas ou ignoradas” (Bensaïd, 1999, p.15). Num aparente paradoxo, o “ponto extremo do desencantamento”, sob a proclamação eloqüente do fim da história, transforma-se um “instante precioso” a partir do qual “tudo se torna possível”; instante “de um despertar proustiano” favorável a uma releitura herética de Marx e, bem entendido, de toda a tradição marxista (Bensaïd, 2004, p.409).
É com esta perspectiva “aberta” que Bensaïd se propõe a enfrentar, a partir do marxismo, os novos desafios intelectuais e políticos postos pelo capitalismo contemporâneo – em particular aqueles que emergiram com a “tripla crise anunciada”: da “historicidade moderna”, das “estratégias de emancipação” e das “teorias críticas” (Bensaïd, 2009, p.152). Confrontar este “esgotamento do paradigma político moderno” é, para Bensaïd, um imperativo fundamental para a urgente e necessária revitalização teórico-política das forças potencialmente anticapitalistas. Sua leitura dos autores do passado, de Benjamin e de Gramsci em particular, é, portanto, eminentemente seletiva (quer dizer: “política”), orientada pelas preocupações e expectativas do seu presente. Pois ele sabe bem que “a herança não é uma coisa inerte ou um capital que se põe no banco”; ela existe “e é apenas o que dela fazem (e farão) os herdeiros” (Bensaïd, 2008, p.9).
Política no (e do) presente: a filosofia política da história em Bensaïd
Não por acaso, em seus ensaios, ao “atualizar” as reflexões de Gramsci e de Benjamin, Bensaïd aproxima-se de uma tradição específica no âmbito do marxismo
[3]. Em
Walter Benjamin, sentinelle messianique, em
La Discordance des temps. Essais sur les crises, les classes, l’histoire e, especialmente, no ambicioso
Marx l´intempestif : Grandeurs et misères d´une aventure critique (XIXè, XXè siècles), Bensaïd se apóia em Gramsci e, sobretudo, em Benjamin, para reler Marx como crítico radical da “razão” e da “norma” históricas, e, portanto, como um autor cujas formulações teóricas se realizaram na contramão das concepções abstratas do progresso, que legitimam a história dos vencedores. Sob a mediação de Gramsci e de Benjamin, Bensaïd busca reconhecer na obra de Marx a primeira expressão de uma “nova escrita da história” que desconstrói a crença metafísica da história universal, marcada por etapas determinadas de desenvolvimento.
“Ao contrário do que muitos supõem, Marx não é um ‘filósofo da história’, mas sim – e muito antes que a segunda Consideração Intempestiva de Nietzsche, A Eternidade pelos Astros de Blanqui, o Clio de Péguy, as teses ‘Sobre o conceito de história’ de Walter Benjamin, ou o livro póstumo de Siegfried Kracauer A História – um dos primeiros a ter rompido categoricamente com as filosofias especulativas da história universal: providência divina, teleologia natural ou odisséia do Espírito” (Bensaïd, 2009, s/p).
Teóricos da luta e da política revolucionárias, Marx, Gramsci e Benjamin rompem com as filosofias especulativas da história em direção a uma concepção do presente que não é um simples “elo no encadeamento mecânico dos efeitos e das causas, mas uma atualidade repleta de possíveis, onde a política supera a história na decifração de tendências que não fazem lei” (Bensaïd, 1999, p.30). O presente “é o tempo por excelência da política, o tempo da ação e da decisão, no qual se joga e volta a jogar-se permanentemente o sentido do passado e do futuro” (Bensaïd, 2009, s/p).
Nas reflexões destes autores, “o passado e o futuro estão sob a atração do presente”, de modo que “o passado não determina mais o presente e o futuro, segundo a ordem de uma conexão causal”. E o futuro, por sua vez, “não ilumina mais retrospectivamente o presente e o passado, conforme o sentido único de uma causa final. O presente torna-se a categoria temporal central” (Bensaïd, 1995, s/p, tradução livre do francês), no âmbito de uma espécie de “tempo entrecruzado”, como disse Benjamin em seu ensaio sobre Proust (Benjamin, 1994, p.45). À diferença das concepções de Ernst Bloch, que encontram no futuro (no “ainda-não-ser”) sua categoria dominante, as reflexões de Benjamin e de Gramsci apontam para a centralidade do conceito de política em sentido amplo, como campo de forças, no presente, aberto ao aleatório, ponto de reabertura da história que perturba a norma e o continuum histórico. “A antiga filosofia da história extingue-se, por um lado, na crítica do fetichismo da mercadoria e, por outro, na subversão política da ordem estabelecida” (Bensaïd, 1999, p.13).
Em oposição às tentações neo-hegelianas - que conformam o marxismo num sistema teórico fechado, sustentado pela crença na realização da razão da história -, Bensaïd apóia-se em Gramsci e Benjamin para sustentar que “a ‘história universal’ não é o cumprimento e um destino ou de uma escrita”; na verdade, enquanto “resultado do processo de universalização efetiva da consciência (especialmente pelo desenvolvimento da comunicação), ela própria é um produto histórico, do qual convém dar-se conta, e não o princípio explicativo” (“A história como história universal é um resultado”, disse Marx nas notas introdutórias aos Grundrisse). A história “não tem sentido filosófico. Mas é politicamente inteligível e estrategicamente pensável” (Bensaïd, 1999, p.46), pois, “na história real, o vencido não está forçosamente errado, e o vencedor não está necessariamente com a razão” (Bensaïd, 1999, p.57). No limite, “não há história senão na medida em que acontece o que teria podido não acontecer” (Bensaïd, 1999, p.391). A política é exatamente o espaço de conflito sobre o status e a interpretação dos “fatos”.
A partir de um presente que não é mera transição cronológica, de um presente suspenso, que não é passagem, senão bifurcação e constituição de alternativas, Bensaïd coloca-se a refletir sobre a temporalidade específica da política, nos seus contratempos e descontinuidades em relação às demais esferas da totalidade social. Nas reflexões de Gramsci, o filósofo francês encontra aportes fundamentais para a compreensão das mediações entre condição social e formação política de classe, ou seja, entre localização estrutural na pirâmide produtiva e social e a construção de projetos políticos com capacidade (contra) hegemônica, com vistas à formação de uma vontade coletiva capaz de fazer frente à vulnerabilidade das classes subalternas em face das iniciativas materiais e psíquicas de “cooptação” por parte das classes dominantes
[4]. Em Benjamin, por sua vez, Bensaïd visualiza uma espécie de potencialização desta visão radical da política como “estratégia de despertar suscetível de interromper o encadeamento catastrófico do tempo mecânico” (Bensaïd, 1999, p.191). Para Benjamin, o despertar é o momento no qual – ao quebrar o continuum temporal da história vivida como num sonho petrificado – os “vencidos” emergem como corpo coletivo revolucionário, intentando atravessar, a cada segundo, a estreita porta por onde pode surgir o messias coletivo.
Num plano político mais propriamente “concreto”, tanto Lênin – com sua teoria do elo frágil – quanto Trotsky – com a teoria do desenvolvimento desigual e combinado – são responsáveis diretos pela “tradução” estratégica desta nova escrita da história inaugurada por Marx (Bensaïd, 1999, p.45). Para eles, como para Marx ou Gramsci, “crise política e maturidade das condições econômicas não coincidem forçosamente” (Bensaïd, 1999, p.77). A política não é simples prolongamento da luta social e econômica; “a luta política é irredutível ao movimento social” (Bensaïd, 2008, p.31). Muito além, a política possui também uma função estruturante do social, articulando a luta de classes num nível concreto-estratégico.
No limite, as relações de força, objetiva e subjetivamente, decidem-se na práxis das classes sociais em luta. “Em Marx a antinomia da necessidade e da liberdade resolve-se no aleatório da luta” (Bensaïd, 1999, p.297). Racionalidade que se faz história, a política “contra-hegemônica” dos oprimidos finca a liberdade num terreno aparentemente petrificado pela “necessidade” do mesmo, do “eterno retorno do sempre-igual”, como dizia A. Blanqui. É como espaço da luta que a política se apresenta como temporalidade específica, que não necessariamente (e quase sempre não) converge com o desenvolvimento das forças produtivas. Sob os imperativos do “atraso” econômico russo, Lênin e Trotsky compreenderam que a revolução social é, antes de tudo, um ato político, cujas determinações sempre acabam por escapar aos modelos abstratos. “Os motins e as revoluções não obedecem aos decretos da teoria” (Bensaïd, 1999, p.55).
Ainda no final da década de 1960, sob a efervescência política de um momento no qual se tinha a sensação de que a “história batia à nuca” (como ele mesmo diz em sua autobiografia
Une lente impatience), Bensaïd redigiu uma tese de mestrado sobre “A noção de crise revolucionária em Lênin”. Sob orientação de Henri Lefebvre, que já havia denunciado a incapacidade do “estruturalismo” de pensar a crise e as bifurcações históricas, Bensaïd visualiza na política a possibilidade de uma ruptura profana no âmbito imanente da história (“profana” porque recusa não apenas a transcendência religiosa, senão também o fetichismo – tão transcendente quanto – da “religião” da História Universal). Articulando temporalidades discordantes, o “tempo quebrado” da crise é compreendido, em Lênin, a partir do ponto de vista da política estratégico-revolucionária de um sujeito em capacidade potencial de “resolvê-la” (Bensaïd, 2004, p.116). Em conseqüência, na contramão das interpretações estruturalistas, Bensaïd acredita que, nas reflexões de Lênin, “a crise revolucionária é também, a seu modo, a forma sob a qual se ajusta ao presente a dupla determinação do passado e do futuro” (Bensaïd, 2004, p.115). A crise revolucionária “é pluritemporal. Nela, diversos tempos se misturam e se combinam” (Bensaïd, 2000, p.189). E a política, cuja temporalidade específica é o presente concentrado, é o lócus efetivo da possibilidade de instauração de uma verdadeira descontinuidade na história
[5].
Neste contexto, a própria idéia da transição revolucionária muda de tom. Geralmente concebida como a locomotiva da história e do progresso, que faz acelerar o desenvolvimento das forças produtivas do homem, a revolução se apresenta agora como política de ruptura com a catástrofe resultante da evolução e da crise da economia capitalista. Em suma: a revolução é, acima de tudo, um “freio de emergência” (na expressão de Benjamin), isto é, uma forma de interrupção – no “tempo-de-agora” - do continuum histórico. “Não-contemporânea”, a política revolucionária constitui-se nas fissuras da lógica contraditória do sistema do capital, canalizando-as para a possibilidade de superação efetiva da ordem vigente.
Gramsci e Benjamin bem sabiam disso. E sabiam também que a revolução é uma
aposta (como diria Pascal, nos termos recuperados por Lucien Goldmann) sempre imprevisível. Segundo dizia Gramsci, “só se pode prever a luta”, e não o seu desfecho concreto (Gramsci, 1999, 267)
[6]. Nas palavras de Bensaïd (1999, p.85): “Inatuais, extemporâneas, descontemporâneas, as revoluções não se integram nos esquemas preestabelecidos da ‘supra-história’ ou nos ‘pálidos modelos supra-temporais’”. Concretamente, “sua ocorrência não obedece ao ordenamento de uma História universal” (Bensaïd, 1999, p.85). Toda revolução é, por isso, “uma imprudência criadora” (Bensaïd, 1999, p.85). “Enquanto a política parlamentar conhece apenas uma dimensão temporal, a do encadeamento monótono das sessões e das legislaturas, o tempo das revoluções é concentrado, redobrado sobre si mesmo” (Bensaïd, 2000, p.188).
A luta de classes à frente da história: a temporalidade dos oprimidos
Esta concepção da política, como relação entre classes no âmbito de uma história feita pelos próprios homens, encontra-se em franca oposição, por exemplo, à redução habermasiana da política à busca por um consenso fundado num hipotético (nos limites do capitalismo) “espaço público”. Na visão de Daniel Bensaïd (1999, p.216), em sua tentativa de estabelecer princípios normativos para a reconstituição do “espaço público”, Habermas coloca “entre parênteses o conflito social”, concebendo-o “não como o fundamento, mas como a conseqüência do confronto entre doutrinas compreensivas inconciliáveis”; a política é, então, ligeiramente reduzida “a um consenso desencarnado, em levitação” (Bensaïd, 1999, p.216). Mas, na verdade, “enquanto os sujeitos consensuais da comunidade comunicacional ideal (formulada por Habermas) aparecem como anjinhos etéreos e ectoplasmas sem emoções nem paixões, a língua é um lugar em que os ‘falantes’ se enfrentam: o discurso peremptório dos dominadores e a palavra subalterna dos dominados”. Em última instância, “o agir comunicacional não escapa dos conflitos e das relações de força. Há palavras que ferem e palavras que matam” (Bensaïd, 2008, p.44).
A possibilidade de “atualização” do marxismo vincula-se, para Bensaïd, à capacidade de revitalização da luta de classes como conceito central no materialismo histórico. A centralidade do conceito de luta de classes permite uma abordagem da história como campo de possibilidades, no passado e no presente, em oposição às concepções mecanicistas da “necessidade histórica”:
“O caráter central da luta de classes e seus incertos desenlaces exige [...] uma parte de contingência e um conceito não mecânico de causalidade, uma causalidade aberta cujas condições iniciais determinam um campo de possíveis, sem determinar mecanicamente qual triunfará” (Bensaïd, 2009, s/p).
Até por isso, não se trata, exatamente, da classe social como categoria sociológica, a ser classificada em suas múltiplas estratificações. Como já havia demonstrado E. P. Thompson – inspiração importante para Bensaïd -, “a dinâmica das relações de classe não é um princípio de classificação categorial” (Bensaïd, 1999, p.252). Na contramão da classificação sociológica, “não há classe senão na relação conflitual com outras classes” (Bensaïd, 1999, p.148). Mais precisamente, “não há – na opinião de Bensaïd -, em
O Capital, definição classificatória e normativa das classes”, mas “um antagonismo dinâmico que ganha forma, em primeiro lugar, no nível do processo de produção, em seguida, no do processo de circulação e, finalmente, no da reprodução geral” (Bensaïd, 2008, p.35). Fenômeno histórico, a classe não é uma “estrutura”, tampouco uma “categoria”, e sim um processo de formação assimétrica
[7] que ocorre efetivamente nas relações sociais e humanas. “Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses” (Thompson, 1987, p.10).
À diferença de um conceito essencialista (“ontológico”, em certo sentido), Bensaïd sugere uma noção estratégica de classe, que já se encontra no próprio Marx:
“O papel central atribuído por Marx à classe operária não realça um determinismo sociológico que conduziria mecanicamente o proletariado a agir em conformidade com sua essência. Ele é de ordem estratégica: agrupar as demandas particulares e ultrapassar as diferenças em um combate comum, na direção de um processo de universalização” (Bensaïd, 2002, p.95 – tradução livre do francês).
Às classes oprimidas, cabe forjar um projeto contra-hegemônico na esfera da qual se torne possível estimular novas experiências de luta política e social. O protagonismo da política significa, para Gramsci, Benjamin e Bensaïd, a tentativa de re-abrir a história a partir do ponto de vista dos oprimidos, vale dizer, a partir da perspectiva da luta anticapitalista, escapando da “eternidade mórbida das estruturas” (Bensaïd, 2004, p.113). Conjugação político-revolucionária da estratégia hegemônica das classes subalternas num contexto de complexificação crescente da luta de classes: este era o horizonte que pautou as reflexões de Gramsci em torno da intervenção política ativa das classes oprimidas na concretização de alternativas históricas à ordem estabelecida.
Com uma concepção “aberta” das classes sociais – que enfatiza a importância da experiência concreta da luta política no processo de formação – Gramsci e Benjamin nos permitem fundamentar uma agenda intelectual capaz de estabelecer um critério interpretativo para a análise das configurações contemporâneas da luta de classes. Se Benjamin rastreia sua perspectiva anti-determinista numa recusa substantiva do caráter fundamentalmente limitado das narrativas do progresso, Gramsci rejeita o reducionismo economicista (Cf., p.ex., sua crítica ao “Ensaio Popular” de Bukharin) por meio da ênfase concreta na política como temporalidade decisiva na realização da história, ponto nodal de uma perspectiva anticapitalista de longo alcance, capaz de reatar os laços entre as lutas do passado, do presente e, enfim, das possibilidades orientadas para o futuro
[8].
Marxismo aberto e profecia profana: Gramsci e Benjamin à luz do “tempo-de-agora”
Em busca do “atual ainda ativo” dos “clássicos”, Bensaïd prefere lidar com seus espectros a partir dos desafios do presente, e não como irrupções de uma verdade já revelada. Herdeiro ativo dos predecessores, o filósofo desvia-os para o agora, colocando-os à prova das transformações de época. Gramsci e Benjamin são recuperados a partir da necessidade de uma ruptura com o mecanicismo que condicionou as formulações de parcela significativa do marxismo. Reabrir a história implica, antes de tudo, reabrir a reflexão sobre a história, notadamente, sobre a possibilidade de ação revolucionária na história.
Daí a importância da temporalidade específica da política como campo dos possíveis. Para Bensaïd, a revitalização de uma “política profana como arte estratégica” é um imperativo fundamental para a pretendida reabertura da história, em oposição tanto ao culto sonolento do progresso em sentido único quanto à diluição contemporânea da história no instante fugaz de um presente eternizado. Nem progresso linear, tampouco fim da história, a política revolucionária é irredutível aos esquemas economicistas do marxismo vulgar, que se contentou em encontrar nas relações econômicas o termômetro exato das demais esferas da totalidade, renunciando à apreciação das rupturas e das bifurcações da história.
Sob os tormentos do avanço da mercantilização do mundo, a temporalidade política permanece ameaçada pelo perigo sempre renovado do “totalitarismo”
[9]. E por isso mesmo sua recomposição é urgente, à medida que ela forma o horizonte de possibilidades de futuro, a partir de um hoje cujo desfecho deixa pra trás um ontem mirando para o amanhã. Contratempos, discordância dos tempos, eis que se revelam em nosso tempo:
“quando se quebra a cadeia do tempo, quando o passado já não aclara o futuro e quando o futuro já não justifica o presente, os acontecimentos surgem como ruptura e bifurcação em um equilíbrio salpicado de uma pluralidade de possíveis. Como resultado, ‘a política passa a prevalecer frente à história’” (Bensaïd, 2009, p.71).
A “inversão” da relação entre história e política provoca um “reordenamento radical da semântica dos tempos históricos”. Trata-se de se “atribuir à política o primado sobre a história” (Benjamin, 2006, p.433). O passado torna-se, assim, não um conjunto factual mais ou menos coerente, e sim um momento da disputa política do presente, cujos olhos estão voltados, sem qualquer fatalismo, para as possibilidades do futuro. “Em outras palavras, a história é considerada desde um ponto de vista estratégico e não como um tribunal de fatos consumados que emite seu veredicto no crepúsculo” (Bensaïd, 2009, p.71). Ao contrário do que projetam os “adoradores o fato consumado” - sempre dispostos a justificar as atrocidades do vencedor -, não há juízo definitivo na história: o passado, o presente e o futuro permanecem “abertos”, como campo político de batalhas. A História como tribunal é sempre a tentativa de impor a última palavra dos vencedores; o avanço das concepções judiciárias da história significa, em proporção inversa, o declínio da política como mediação fundamental de toda concepção efetiva de justiça (Cf. Bensaïd, 1999, sobretudo pp.7-26).
Neste processo, Daniel Bensaïd consolida uma leitura destes dois filósofos centrais do marxismo, Benjamin e Gramsci, na contramão da tendência – que se comprova na recepção internacional dos autores - em circunscrevê-los ao conformismo que ameaça a tradição revolucionária. A recepção “hegemônica” de Benjamin, sob os infortúnios da academia, centrou-se numa abordagem especializada, ora no terreno da teoria das comunicações – com a leitura do célebre ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” – ora no campo da crítica literária e/ou do ensaísmo filosófico. Em comum, ocorreria uma subestimação deliberada da dimensão político-revolucionária de Benjamin, assim como de sua relação teórica com o marxismo (Além de Bensaïd, outra honrosa exceção a estas interpretações é Michael Löwy, intelectual brasileiro radicado em Paris cujas afinidades – e algumas diferenças - com o filósofo francês são impressionantes, sobretudo em suas leituras benjaminianas; cf. Querido, 2008).
O caso de Gramsci, como se sabe, não é menos sintomático, seja por sua diluição no reformismo político oriundo do chamado “eurocomunismo”, seja pela tentativa acadêmica de restringi-lo à condição de um teórico, sem adjetivos, da ciência política, tarefa para a qual as interpretações influenciadas por Norberto Bobbio cumpriram papel de destaque. Em ambos os processos, pode-se observar o predomínio de uma tonalidade semi-liberal, que se afasta da feição incontestavelmente marxista da obra de Gramsci. É somente após o colapso das sociedades pós-capitalistas do leste europeu e a desagregação do PCI (Partido Comunista Italiano), que ocorre um processo de abertura do pensamento gramsciano com vistas à reflexão sobre as novas questões das lutas sociais e políticas anticapitalistas. A leitura que Daniel Bensaïd realiza de Gramsci é parte deste processo de libertação, mas se orienta por um caminho bem diferente tanto das interpretações semi-liberais (que ainda persistem
[10]), quanto de algumas tendências neo-gramscianas no campo dos estudos culturais contemporâneos.
Eis, então, a originalidade e a importância da interpretação realizada por Daniel Bensaïd das reflexões de Walter Benjamin e de Antônio Gramsci: ousar ultrapassar o leque de possibilidades das leituras apaziguadas, conformistas. Benjamin é apresentado, com efeito, como o filósofo que sustentou a necessidade de ruptura revolucionária com o
continuum histórico da catástrofe, enquanto Gramsci, por sua vez, aparece – se não como um leninista ortodoxo – como um teórico atento às sugestões de Lênin sobre o tempo da política e sua inserção na história. Num caso como no outro, Benjamin e Gramsci são mobilizados a partir de uma esperança que lhes eras cara: o imperativo de
tomar a história de assalto, subvertendo-a em favor da necessidade de retomada da práxis dos oprimidos, o que pressupõe, hoje, a elaboração de um novo léxico político das classes subalternas
[11].
Nesta renovação da “aposta” estratégica, em meio ao esgotamento do paradigma político moderno, Bensaïd contribui de forma valiosa para a rememoração da inquietude revolucionária destes dois vencidos extraordinários do pensamento e da práxis anticapitalista. Ele segue, nesta empreitada, o próprio Benjamin, para quem “o dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (BENJAMIN, 2005, p.65).
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[2] Daniel Bensaïd jamais dedicou uma obra específica à Gramsci, como o fez com Benjamin. O filósofo italiano é, acima de tudo, um ponto de partida para uma releitura de Marx afinada com a reflexão sobre desafios e questões polêmicas do marxismo contemporâneo. A mesma perspectiva orienta sua leitura de Benjamin, mas com uma ênfase diferente: mais que Gramsci, Benjamin constitui, sem exagero, a figura central e decisiva em suas obras das últimas duas décadas.
[3] Mesmo porque, como sabemos, não se pode falar da existência de
um marxismo; “as abordagens de Karl Kautsky ou de Rosa Luxemburgo, as de Nikolai Bukharin ou de Karl Korsch, as de Louis Althusser ou de Roman Rosdolsky não conduzem ao mesmo Marx” (BENSAÏD, 1999, p.15).
[4] Talvez pela necessidade deste horizonte estratégico em qualquer luta social, Daniel Bensaïd (2009, pp.217-229) rejeite com tanta veemência o “rechaço da política” implícito na defesa de John Holloway (baseando-se num certo “zapatismo imaginário”) de um programa do “anti-poder” para as classes subalternas, acreditando que, assim, estaria libertando as forças anticapitalistas da “ilusão estatal” que teria condicionado até mesmo noções como a de hegemonia. Cf. também Daniel Bensaïd, “La Révolution sans prendre le pouvoir ? À propos d’un récent livre de John Holloway” (2003).
[5] Até o fim de sua trajetória, Bensaïd ainda apostava que “Lênin foi um dos primeiros a conceber a especificidade do campo político como um jogo de poderes e de antagonismos sociais transfigurados, traduzidos numa linguagem própria, cheia de deslocamentos, condensações e de lapsos reveladores” (Bensaïd, 2004, p.121). Não surpreende, portanto, que – ao lado de Alain Nair, num artigo de 1969 – Bensaïd tenha rejeitado a crença de Rosa Luxemburgo na evolução espontânea das massas, no curso da qual a classe-em-si tornar-se-ia progressivamente uma classe-para-si, como se o sujeito social coincidisse imediatamente com o sujeito político (portador de uma consciência de classe revolucionária).
[6] A propósito, cf. Gramsci (1975); ou, para uma leitura “desde o Sul”, cf. Aldo Casas (2004).
[7] “Entre os opressores e os oprimidos, a luta é sempre assimétrica” (Bensaïd, 2004, p.211). E seus resultados também. Não é por acaso que Gramsci distingue as diferentes formas de exercício da hegemonia a partir das classes sociais que a exercem: enquanto a hegemonia da burguesia dominante permanece uma hegemonia restrita, que, no limite, serve para resguardar a dominação de uma fração da classe sobre o conjunto das classes subalternas – sob a mediação do Estado -, a hegemonia das classes dominadas expande a base social da política e do Estado, por meio das possibilidades sociais e políticas das classes subalternas em ascensão, constituindo-se, então, uma “hegemonia plena ou expansiva”. A tal respeito, cf. Bianchi (2007, p.20).
[8] No Brasil, Leandro Konder destacou as
afinidades antideterministas de Gramsci e Benjamin. “Benjamin não conhecia Gramsci (e Gramsci também ignorava as idéias de Benjamin). Paralelamente ao pensador italiano, entretanto, e sem um engajamento político semelhante ao dele, o ensaísta alemão, em face do determinismo, refletia preocupações idênticas” (Konder, 1999, p.13).
[9] Apoiando-se nas contribuições de Hannah Arendt e, em menor medida, de Carl Schmitt, Daniel Bensaïd incorpora criticamente o conceito de “totalitarismo” para descrever os processos de eliminação da política, quando esta é totalmente subsumida a imperativos que lhe são externos – diluindo-se no controle total da burocracia ou nas “águas geladas do cálculo mercantil” (Marx).
[10] Basta mencionar, a tal respeito, a tentativa de Luiz Werneck Vianna, no Brasil, de atribuir um significado programático à idéia de revolução passiva, transformando-a em estratégia política “positiva” das classes subalternas, “que deveria apropriar-se dessa forma do movimento político da burguesia com o objetivo de subvertê-la, invertê-la ou modulá-la” Cf. BIANCHI (2005, p.35, 36), para quem “a estratégia gramsciana caminha no sentido oposto dessa positivação. É uma estratégia de
anti-revolução passiva”.
[11] Bensaïd mantém certa hesitação crítica em relação às novas tendências das lutas sociais, embora, ao mesmo tempo, procure visualizar suas potencialidades renovadoras. Com a insurreição zapatista (1994), as greves nas França (1995), com a aparição do movimento altermundialista após as manifestações de Seattle (1999), e, enfim, com os processos do “Fórum Social Mundial” a partir de 2001, diz ele, “entrou-se num período que chamo de ‘fermentação utópica’, no seio do qual a imaginação recomeça a trabalhar” (BENSAÏD, 2008, p.94).